O SOBRADO - Crônica de Maria do Carmo Pereira
Coelho
Maria do Carmo Pereira Coelho nasceu em Belém do
Pará em 1947.
Começou sua carreira docente em 1967, na
Secretaria de Educação do Pará. Depois, na
Secretaria de Educação do Distrito Federal, no
Centro Universitário do Distrito Federal - UDF,
no Centro Universitário de Brasília - CEUB, na
Universidade de Brasília UnB, no Colégio Militar
de Brasília, na Universidade Aberta do Brasil –
UAB, na Universidade Paulista - UNIP.
Dedicou-se ao trabalho de Orientadores
Pedagógicos do Ensino Básico e Médio.
Concluiu doutorado na USP/SP com o trabalho As
Narrações da Cultura Indígena da Amazônia –
Lendas e Histórias.
É autora do Material Instrucional de Língua
Portuguesa para o curso semi-presencial de
graduação, publicado pela UDF, Brasília, 2006.
Como consultora, dedica-se a questões relativas
à leitura, ao ensino da produção de texto e tem
colaborado com artigos para revistas.
Atualmente, também se dedica à docência
presencial e “on-line”; e a escrever memórias e
livros de Literatura Infanto-Juvenil.
Publicou o livro A menina Leitora e Um Quadro
Pregado na Parede pela Editora Scortecci, São
Paulo, 2015.
Publicou a crônica O Sobrado, na Antologia
Palavras Abraçadas, Edição Especial da Scortecci,
24ª BIENAL INTERNACIONAL DO LIVRO DE SÃO PAULO –
2016, com o pseudônimo Girassol.
O Sobrado é uma crônica na qual o relato,
original e criativo, entra com leveza no mundo
fantástico, sem perder a linha principal da
narrativa familiar dominante.
O encanto da história conduz a leitura do texto.
Ambientado na realidade do cotidiano, evoca sons
que lembram a melodia de uma flauta mágica.
Theresa Catharina de Góes Campos
Brasília - DF, 06 de setembro de 2016
O SOBRADO
Quero que consigam ver aquele sobrado de muitas
janelas. Ele é verde e branco. Hoje, lá funciona
um hospital. Nos idos de1940 a 1950, era uma
casa de família, geminada com uma fábrica de
guaraná. Foi, nesse casarão, que eu nasci. Lá
morei até completar três anos.
Assim, passo a contar o que ouvi de outras
pessoas. Fiquem atentos. Nesse sobrado, ao
chegar a este mundo de meu Deus, eu trouxe uma
grande infecção nos olhos. Mas fiquei boa com
nitrato de prata. O médico, após me ver, disse
que a minha mãe estava mais doente do que eu.
Parece que essa doença era assim: um pegava e
passava para o outro. Acho que os meus olhos
doentes deixaram minha mãe bastante encucada.
Como percebem, já cheguei ao mundo sem poder ver
a luz do dia. Ainda bem que não fiquei cega.
Consegui curar-me. E, como disse, minha
permanência, nesse sobrado, foi por pouco tempo.
Se tivesse ficado nele, durante mais tempo,
havia morrido, pois ninguém, naquele casarão,
tinha tempo de me levar para tomar um raio
sequer de sol.
Isso não era ruindade de ninguém daquela casa.
Não. Era só preocupação com coisas mais
importantes do que criança. Criança, no sobrado,
era o que não faltava. Pelo menos , quando
nasci, meus seis irmãos já me esperavam para ser
mais uma companheira das alegres brincadeiras
infantis e do grande medo do qual todos nós
íamos compartilhar.
Lá, naquela casa, vivia uma mulher de grandes e
bonitas olheiras. Era minha mãe. Vivia com sete
crianças. Vivia também um homem que arregaçava
as mangas quando ficava com raiva. Era meu pai.
Vivia, ainda, uma mulher cujo branco do olho era
maior do que tudo no seu rosto. Era com ela que
minha mãe dividia seus afazeres, que eram
infinitos. Perto do Olho Branco, minha mãe e nós
não tínhamos medo de nada. Parece que ela
espantava todas as almas penadas e o capeta que
tinham o costume de nos tirar a paz,
principalmente, quando nosso pai saía para suas
viagens, que não eram poucas.
Naquele sobrado, à noite, enquanto meu pai
viajava para fazer a praça, que era vender o
guaraná e outras bebidas. Todos nós e,
principalmente, a mulher de lindas olheiras,
víamos um homem de cara vermelha que havia
morrido enforcado naquele sobrado. Isso eram os
vizinhos que contavam à boca pequena pelas
esquinas do bairro da Cidade Velha (onde ficava
a nossa casa).
Ainda bem que era um monte de gente que via tal
assombração. Só quem não via o enforcado eram
meu pai e a Olho de Leite. Vivíamos petrificados
de medo do enforcado. Nesse ponto, minha mãe e
nós nos parecíamos com prima Cora. Era uma prima
de minha avó materna, que morava lá para o lado
de Goiás Velho. Sim, parecíamos com prima Cora,
só que com uma pequena diferença. Prima Cora só
acreditava em histórias de assombração quando
era criança. Minha mãe adulta continuava tendo
medo de muita coisa. Se eu não me engano, o meu
tio tísico Bandeira, quando criança, tinha medo
dos gatunos. Estes, para ele, eram homens de
cara de pau. Sempre fico imaginando como seria
um homem de cara de pau!
Mas é evidente que minha mãe também tinha medo
de gatunos. Até hoje me lembro de um poema que
ela me ensinou e eu recitava e representava com
a minha irmã Certa Demais. Dizia assim:
Eu tenho tanto medo de gatunos,
Que podem assaltar a minha casa.
São eles visitantes importunos,
Que para fazer mal não perdem vaga.
- Ah! Felizmente,vi um guarda.
Seu guarda, venha cá!
Se quiserem, depois eu escrevo o resto do poema,
está bem? Essa minha irmã Certa Demais, quando
ficou gente grande, virou professora de fé em
tudo e espantou esse medo para lá.
Então, minha mãe medrosa ficava em casa de noite
e, ao som de uma música, Casadinha Triste,
colocava os sete filhos na cama e, ainda, a
mulher de olho branco. A cama ficava parecida
com a da história da Casa Sonolenta de Audrey
Wood.
Acho que foi por causa da mulher do Olho de
Pires de Leite que mamãe não morreu de medo. No
mundo, só havia uma pessoa que se incomodava com
o medo de minha mãe. Era o meu avô paterno.
Contam que ele morava perto de um rio onde uma
cara parou para sempre. Às vezes, eu fico
pensando como uma cara fica parada para sempre.
Será que é a morte? Penso também que essa cara
ficava na Terceira Margem do Rio. Já ouviram
falar nessa tal de Terceira Margem? Quem gostava
de falar sobre isso são dois compadres de minha
mãe e de meu pai. Um deles se chama Rosa e outro
se chamava Bené.
As assombrações eram tantas, nesse nosso
sobrado, que, às vezes, à noite, ele parecia um
navio em meio a uma pororoca. Parecia até que
alguém espetava a nossa casa com um tridente e
nos jogava dentro da baía. Já contei que, em
frente ao casarão, havia uma baía? Pois é.
Havia. E, justamente, por causa dessa baía, de
vez em quando, um vento muito forte começava a
soprar em todas as direções, e atingia nosso
sobrado assombrado. Esse vento era conhecido
pelo nome de Marajó. Havia outros como o
Marambaia, o Maracanã e o Marudá.
Não. Meu avô paterno não acreditava no nosso
medo, nem no de nossa mãe. Ele só se fazia
presente para ajudar a minha mãe quando um de
nós adoecia. Nesses momentos, ele, por ter
vivido mais, sabia direitinho como um bom
companheiro deveria se portar a fim de que a
ansiedade de minha mãe fosse diminuída. Dizem
que o medo de minha mãe de perder um filho era
maior do que o de todas as mães que moravam por
ali perto do nosso sobrado.
Era por causa desse medo que meu avô paterno
vinha à nossa casa. Por essa atenção que
dedicava à minha mãe, muitos vizinhos pensavam
que Vovô fosse casado com ela.
A baía próxima ao nosso sobrado se chamava Negra
Morte. O significado desse nome remetia ao
sofrimento de minha mãe e de meu pai em
controlar o destino de um de seus filhos. Ele se
chamava Corajoso, mas, depois ficou mais
conhecido como Peixe. Dizem que ele era capaz de
atravessar nadando o furo do Nunca Venhas Aqui.
Ainda bem que era só ele quem ia lá. O coitado
de meu outro irmão tinha herdado o medo da mãe.
Enquanto meu irmão Peixe saía para nadar, o
Medroso ficava às margens da baía chorando. A
baía, com as suas lágrimas, ficava ainda mais
perigosa. Havia outro irmão que era pequenino
como eu e, ainda, não conhecia a famosa baía. O
nome desse meu irmão era Capiti. Também, assim,
se chamava meu bisavô, que se casou com Capitu.
Para nós crianças, esses nomes cheiravam a
enxofre e pareciam com nome de capeta.
Quem não ia passear às margens da baía, quando o
sol era benéfico à saúde, ficava amarelo e
doente dentro daqueles casarões, nos quais não
faltava trabalho. Como era pequena e precisava
tomar o sol da manhã, adoeci. Novamente, fui ao
médico só para minha mãe ouvir que eu precisava
tomar sol.
Felizmente, a fábrica começou a não dar o lucro
esperado. Meu pai tinha sócios. Todos eram seus
compadres e os maiores amigos de meu pai e de
minha mãe. Acontece que eles gostavam mais de
barcos do que de carros. Sentiam falta da água
por debaixo de seus pés. Não sei exatamente o
que tanto eles faziam naquelas viagens de barco.
Talvez levassem caixas e caixas de guaraná para
vender por aquelas bibocas, onde quase ninguém
ía. Diziam que lá era o fim do mundo.
Esses compadres de meu pai não tinham muitos
filhos como meu pai. Havia um, o compadre
Pirarara (nome também de um peixe da Amazônia
não muito nobre) que teve até de adotar uma
criança. A comadre Arara, sua esposa, era como
Dona Genu, não engravidava com facilidade e, se
engravidava, abortava. Dona Genu era uma
conhecida de nossa família, que morava lá para o
lado também de Goiás. Era cantora de ópera. Uma
era a sua preferida - Ópera dos Mortos. Acho que
ela passou a gostar dessa ópera, simplesmente,
por uma ironia do destino que o senso humano
fica até irritado, pois vivia enterrando
anjinhos.
O outro sócio era Seu Pirarucu, casado com Dona
Baleia. Esta comadre , um dia, viajando com sua
família pelo rio Acará, foi obrigada a jogar a
única filha em suas águas.Contam que a menina
tivera uma febre altíssima e veio a falecer.
Acredito que Dona Baleia nunca esquecera dessa
perda traumática.
Era com essa comadre que minha mãe buscava
apoio, quando algum de nós adoecia. Mamãe achava
que Comadre Baleia era muito corajosa, pois não
é todo mundo que tem coragem de jogar a filha
única no rio e logo perto da baía Negra Morte.
Como uma fábrica de guaraná rendia muito pouco
para três sócios, papai foi obrigado a romper
com a sociedade. E, assim, precisamos deixar o
sobrado. Com essa mudança, eu ganhei mais saúde,
pois, com três anos, fui morar noutro lugar,
onde criança podia brincar na calçada, no
quintal e tomar muito banho nos igarapés.
Finalmente, pude me aproximar do que tanto
necessitava – de sol. |