Os Prevaricadores - Ayle-Salassie F.
Quintão* - com observações de Reynaldo
Domingos Ferreira
De: Reynaldo
Ferreira
Data: 7 de dezembro de 2016
Assunto: Prevaricadores
Repasso o artigo do meu amigo Ayle-Salassié,
fazendo, contudo, algumas observações, no
tocante, primeiro, ao conceito, que se tem
hoje, de delação, em relação ao que se
tinha, ontem, no período de nossa formação,
fortemente influenciados, que éramos - pelo
menos, no meu caso - pelo cinema e pela
literatura americanos, contagiados ambos por
forte condenação aos fatos ocorridos, nesse
sentido, durante o período, nos EUA, de caça
às bruxas ( referência a uma peça famosa de
Arthur Miller, " As Bruxas de Salém" ), do macartismo.
Sobre o tema, Miller escreveu ainda
outra peça, que proporcionou notável
interpretação, no TBC, de Leonardo
Vilar, " O Panorama Visto da Ponte"
, e uma das obras-primas do
cineasta John Ford é, sem dúvida, "O
Delator", que mostra o protagonista como
figura perversa, tanto no sentido ético,
como moral. O diretor de teatro - um dos
criadores do Actor's Studio - e de
cinema, Elia Kazan, por exemplo, ficou
fortemente marcado, para todo o sempre,
por haver citado, perante a comissão
inquisitória do Congresso
Norte-Americano, nomes de atores,
roteiristas e diretores, de tendência
comunista, como Dalton Trumbo, John
Garfield e, entre outros, o próprio
Arthur Miller.
Por outro lado, não sei se os
ensinamentos de Engels e de Rui Barbosa,
ou os modelos familiares por eles
descritos, citados pelo autor, ainda
servem para hoje, pelo menos, no âmbito
de nossa sociedade.
Quando escrevi " Dona Bárbara ", eu
também pensava assim, tanto que desenhei
a figura de Bárbara Heliodora como força
moral extraordinária a conduzir os
destinos da família, desde que ela exige
do marido, Alvarenga Peixoto, num
momento de fraqueza dele, que honre sua
participação no movimento insurrecional
mineiro, da Inconfidência, mesmo sabendo
que ele poderia ser segregado para a
África, como o foi.
Pelo que estou vendo, mulher, como a
Bárbara, que eu criei, não existe mais.
Nunca mais. Estão todas - ou quase
todas, faltando, naturalmente, a dona
Marisa e seus filhos - sendo
interrogadas e presas, solidárias com
seus maridos infratores, com volumosas
contas, em seus nomes, de recursos
desviados dos cofres públicos, no
exterior.
Então essa sólida formação moral da
família brasileira é, acredito, coisa do
passado. Não existe mais. Sei de filhos,
genros e noras de envolvidos em grandes
falcatruas, alguns já presos, que, se
interrogados, afirmam: - Não estamos nem
aí!... Portanto, se Rui Barbosa se
reerguesse do túmulo, hoje, e tomasse
ciência de tudo a que estamos
assistindo, reiteraria o seu desgosto de
ser brasileiro, pois compreenderia que o
conceito vigente ė o de que a família,
que rouba unida, permanece unida, sem
punição. Leiam agora o
interessante artigo.
Reynaldo
Ferreira
Jornalista, advogado, escritor
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Os Prevaricadores
Ayle-Salassie F. Quintão*
“ O senhor prevaricou, ao
não me denunciar” . Na
esteira dos acontecimentos
recentes, poderia acusá-lo
de ter contribuído
moralmente, com a sua
omissão, para a dimensão que
tomou a Lava Jato -
discussão no plenário entre
senadores. No mesmo
diapasão, ainda no
Parlamento, na CPI que
apurava irregularidades na
Petrobras, Marcelo
Odebrecht (dezenove anos de
prisão) alegou sua formação
familiar ética, para não
aderir `a delação premiada.
Marcelo, também pai de
família, optava por jogar
para debaixo do tapete a
miséria da política, em nome
do que ele chamava de
indignidade de uma delação.
Acobertava, desvios de
dinheiro público da ordem de
R$ 7 bilhões e protegia
quase 200 parlamentares que,
com sua intermediação,
haviam transgredido a lei,
usando recursos obtidos
irregularmente, para
elegerem-se deputados,
senadores, prefeitos e
governadores e até
presidentes da República.
Tudo isso parece vir do
“berço”, e menos das
facilidades oferecidas pela
Lei 12.850/13. A família, e
não a lei teria sido a
responsável por esse
amontoado de “deduragens”.
Ver estampada nos jornais a
fotografia do pai, do irmão
ou da mãe, acusados de
corrupção, de enriquecimento
ilícito e serem chamados de
“ladrões”, é demais para
qualquer mãe, filho ou
filha.
Essas coisas têm história.
Começam na vida de cada um
nos pequenos deslizes,
concessões e omissões: os
tais “jeitinhos”. “É a
fórmula mágica e criativa
para resolver os problemas
cotidianos ... e que sempre
pareceu mais próxima de uma
criatividade ancestral do
que da incapacidade de
encarar as coisas legalmente
(Arias, 2013).
Vejam isso. No dia a dia das
pessoas comuns vamos
encontrar, sentado na mesa
de um boteco, o jovem
provinciano procurador que
se mudara recentemente para
aquele edifício. Solteiro,
sem conhecer bem os
arredores e pouco afeto às
habilidades exigidas na
cozinha, começou a tomar
café no bar da esquina. No
momento em que ia pagar, a
dona do estabelecimento
disse-lhe cordialmente:
- Não precisa pagar agora.
Paga tudo no final do mês” .
Vindo de uma formação
familiar cristã e rígida
(conservadora?!), em início
da carreira no Ministério
Público, ele
reagiu:
- Peço à senhora a gentileza
de nunca mais me fazer uma
proposta dessa natureza.
Poderia mandar prendê-la. A
facilidade que está me
oferecendo é um primeiro ato
de corrupção.
Em sentido contrário,
surpreendeu o fato do filho
de Cerveró ter tido a
coragem de gravar uma
conversa privada com o
senador Delcídio do Amaral,
invertendo a equação
familiar, para tentar
salvar a alma do pai, já no
purgatório, a meio caminho
da condenação. Em
angustiado ato de desespero,
gravara Delcídio para, no
mínimo, lavar a moral da
família, vilipendiada na
escola, no mercado, no
trabalho, até no olhar de
estranhos.
Desde Engels (A Origem da
Família, da Propriedade e do
Estado) os modelos
familiares são descritos e
questionados como base de
sustentação das sociedades.
Seria fruto de arranjos e
demandas contemporâneas. A
estrutura apropriada no
Ocidente amparou-se numa
plataforma moral, religiosa
e burguesa que permitiu a
configuração do Estado
Nacional e de um tipo de
cidadania. É tão expressiva
que, segundo Rui Barbosa:
“...destruída
a família, a sociedade se
desfará automaticamente”.
Daí concluir-se que as
famílias dos envolvidos na
Lava-Jato tiveram um papel
muito mais importante que a
lei, ao recomendar aos pais
a opção pela “delação”.
Fragilizados pela vergonha
familiar, os 35 delatores
foram induzidos a assumir a
culpa pela omissão ou
conivência com os atos
lesivos aos cofres e à moral
pública.
O locus de
origem da moralidade na Lava
Jato, atribuída a Sergio
Moro, situa-se, na
realidade, na família, na
escola e, em terceiro lugar,
na vida cotidiana. O
desenvolvimento da
moralidade está relacionado
à qualidade das relações nos
ambientes sociais nos quais
o indivíduo interage (Vinha,
2016). Uma estrutura
familiar sólida ajuda na
formação da personalidade
das crianças e dos
adolescentes,
propiciando-lhes não apenas
os meios, mas, e sobretudo,
as necessidades de amor, de
valoração, de limites e de
coerência. Por meio dos
ensinamentos dos pais, os
filhos descobrem as razões
do estar nesse mundo, e como
ocupar o seu lugar. Gabriel
Chalita(2008), o educador,
destaca os valores
cultivados em família para o
desenvolvimento de
habilidades de autodefesa e
de auto-afirmação do
indivíduo.
No ambiente da delação ou
fora dele, com o quadro de
desconfiança que se instalou
no País, um sujeito
submisso a “delação
premiada” chegou ao fundo do
poço, no limite da
humilhação. Será certamente
desacreditado junto à
sociedade, no mínimo, como
um “prevaricador”.
Dificilmente perderá,
contudo, o lugar no seio da
família, construída de
sonhos, de amor,
necessidade de conservação,
cumplicidade e de amizade.
No Ocidente, o ambiente
familiar teve até hoje uma
estrutura sólida. As
manifestações das ruas
indicam que a família, e não
os partidos ou ideologias,
continua a servir de
modelo para a sociedade, e
os pais de referenciais
para os filhos. A questão é
que referenciais deixam
cada um?
Jornalista, professor doutor
em História Cultural
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