As milagrosas águas do São
Francisco
Aylê-Salassié
F. Quintão*
Quando o
conselheiro profetizou aos gritos que o
sertão iria virar mar, o povo saiu correndo
com medo de se afogar. Pois a água chegou,
e foi muita, dizia um sertanejo para o
outro, assistindo incrédulo Temer abrir as
comportas para a chegada da água em Monteiro
(Pb), no coração do Nordeste. Dois a três
dias depois, lá estava Lula dizendo que a
transposição era dele. É provável. Na
República é bem possível que ele tenha sido
o campeão de inauguração de canteiros de
obras. Implantava a pedra fundamental, e
logo depois abandonava tudo. E assim
transformou o País, projetando para si um
futuro messiânico de inaugurações de obras
iniciadas por ele, e terminadas pelos que o
sucedessem.
A transposição do
São Francisco, com obras abandonadas e
deteriorando-se em todos os lugares está
nesse caso. O projeto existe desde os anos
oitenta, com os militares. No Ministério das
Minas e Energia havia um Departamento
(DNAEE) que fazia medições sistemáticas e
regulares da vazão dos principais rios
brasileiros. O São Francisco era um
problema. Acusava vazões de 5 mil metros
cúbicos por segundo no período das chuvas, e
de 2,5 mil m3/s na seca. Mesmo assim, ao
embalo das predições do conselheiro,
fomentou-se a ideia de que o rio da
integração poderia vir a ser a redenção do
Nordeste. A hidrelétrica de Paulo Afonso (8
milhões de kW) iluminou a região, e aqueceu
a incipiente indústria. Mas oscilava muito.
Inventaram então o reservatório de
Sobradinho, para acumular 34 bilhões de m3
cúbicos, cuja função era manter a
regularidade da descarga em Paulo Afonso.
Com 320 km de
extensão, 4.214 km2 de área, Sobradinho
afogou cidades , vilas, fazendas inteiras,
milhares de hectares de terras férteis,
remanejou populações tradicionais e
destruiu as atividades econômicas na região,
sobretudo a pesca e a pecuária: 80 % do gado
desapareceu. Vieram ainda Xingó e
Itaparica. O desastre foi maior, porque,
além de enterrar Canudos, onde morreu o
beato, as indenizações foram lentas,
obrigando as populações a sobreviver
miseravelmente por muito tempo.
Pressionados
pela pobreza endêmica e a escassez da água,
os governos introduziram projetos de
irrigação, dos quais emergiu, no médio São
Francisco, uma fruticultura com espécies
exóticas, voltada para exportação. Muita
gente migrou para a região. O sertanejo
continuou esquecido, morrendo de sede junto
com o gado. Nessa de fundar, afundar e
remanejar ministérios, os engenheiros
terminaram descobrindo o projeto da
transposição do Departamento de Obras
Contras as Secas, e aderiram às profecias do
conselheiro.
Do meio das
águas imaginárias levantou, entretanto, a
figura do bispo de Barra (Ba), dom Luís
Capio, fazendo greve de fome contra a
pretensão do uso indiscriminado - leviano
mesmo por parte dos políticos - das águas do
São Francisco. Profetizava pragmaticamente:
O rio não vai agüentar, e muitas dessas
obras iniciadas nunca serão concluídas.
Foi sem
surpresa, portanto, que em 16/03/2017, o
volume útil das reservas da Bacia do Rio São
Francisco registrou 10.018 hm³, equivalente
a 21,09% do seu volume útil total. No ano
passado, o armazenamento alcançou 33,04%.
Quando isso ocorre, o mar avança, a
salinização da água acaba com a pesca
e o “gaiola” encalha.
Mesmo assim, as
águas milagrosas do são Francisco geram hoje
milhões de quilowats para a indústria,
abastecem projetos de irrigação, alimentam
barragens e açudes, projetadas
eleitoralmente para abastecer 12 milhões de
famílias em 390 municípios nos estados de
Pernambuco, Ceará, Paraíba e Rio Grande do
Norte. A transposição prevê que suas águas
vão fluir, no Eixo Norte , de Cabrobó (PE)
até o Jaguaribe, no Ceará; e, no Eixo Leste,
de Petrolândia (Pe) até Monteiro, na
Paraíba. Prevê-se o uso de 27% da
capacidade de armazenamento do rio.
A região
hidrográfica do São Francisco ocupa 638.466
km² de área , 7,5% do território nacional,
irrigando 503 municípios de sete estados.
Nasce em Minas Gerais, e chega a sua foz,
no Oceano Atlântico, entre Alagoas e
Sergipe. Percorre 2.800 km de extensão,
englobando 58% do semi árido, onde a
precipitação média anual histórica é de
1.003 mm, muito abaixo da média nacional, de
1.761 mm. A disponibilidade hídrica
superficial regional é de 1.886 m³/s, o que
corresponde a 2,07% do índice do País
(91.071 m³/s). A vazão média é de 2.846 m³/s
(1,58% da vazão média nacional, de 179.516
m³/s), e a vazão de retirada (demanda
total), de 278 m³/s representa 9,8% da
demanda nacional.
. Dados do Comitê da
Bacia do São Francisco revelam que 77% de
suas águas destinam-se à irrigação (213,7 m³/s).
A demanda urbana consome 31,3 m³/s (11%);
industrial, 19,8 m³/s (7%) ; animal, 10,2 m³/s
(4%); e a rural, de 3,7 m³/s (1%). O
potencial energético instalado, em 2013,
era de 10.708 MW (12% do total do País).
Destacam-se as usinas de Xingó e Sobradinho,
cujas vazões foram reduzidas de 1.300m3/s
para 700 m3/s, e Três Marias, de 350m3/s
para 80 m3/s. Agora, depois de quase 40 anos
de projeto, a água para consumo do
sertanejo começa a banhar o agreste.
A questão é saber:
até quando? O uso intensivo das águas do São
Francisco funciona como os saques no Fundo
de Garantia: um problema grave para o
futuro. Não faltam beatos para advertir:
O rio São Francisco está morrendo!
A transposição requer, portanto, um rigoroso
programa de preservação e revitalização da
Bacia: ou para as tais gerações vindouras
restarão apenas histórias do rio dos currais.
Jornalista, professor, doutor
em história cultural
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