Theresa Catharina de Góes Campos

     

Reflexões Homiléticas - Abril 2017
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TERCEIRO DOMINGO DE PÁSCOA (30.04.17)

Lc 24, 13-35

“Reconheceram Jesus quando Ele repartiu o pão”

Talvez um dos relatos mais conhecidos de Lucas seja a história dos dois discípulos na estrada de Emaús. Nas figuras dos discípulos temos um retrato das comunidades lucanas pelo ano 85 - vacilando na fé, descrentes, desanimadas, sem sentir a presença do Ressuscitado. Lucas procura reanimar o seu pessoal, mostrando que eles não estão abandonados - muito pelo contrário, estão caminhando na vida contando com a presença do Senhor que venceu a morte.

Esta história pode nos ajudar bastante hoje, pois retrata a situação de muitos cristãos e comunidades nos tempos atuais – acreditam em Jesus intelectualmente, mas, não vibram com a presença d’Ele no meio de nós; reduzem a fé a uma adesão intelectual aos dogmas, sem que seja algo que dê sentido à vida e à caminhada; limitam o seguimento de Jesus à uma séria de práticas e leis morais, mas, sem qualquer vigor missionário. O nosso texto nos ajudará a ver como a Palavra de Deus na Bíblia pode nos ajudar a interpretar a nossa realidade para que, em lugar de perder o ânimo, nos tornemos vibrantes discípulos-missionários/as do Senhor. Jesus é o mestre da Bíblia e aqui ele demonstra como aproveitar a Escritura para iluminar os problemas práticos da nossa caminhada, e reforçar a coragem na nossa missão de evangelizadores.

O que temos aqui é realmente um pequeno drama em cinco atos - um drama que nos mostra a pedagogia de Jesus. Vejamos mais de perto:

O Primeiro ato: vv. 13-19ª: “Introdução”

O relato começa com as palavras “nesse mesmo dia”. Devemos já fazer uma parada e nos perguntar “que dia”? Para nós seria o dia da Ressurreição, mas, para os dois discípulos era simplesmente o terceiro dia da morte de Jesus! Dia de desânimo, de tristeza. “Os dois iam para um povoado chamado Emaús, distante onze quilômetros de Jerusalém”. Aqui é bom lembrar que o bom judeu não podia caminhar mais do que um quilômetro no dia de sábado. Portanto, era impossível que eles viajassem no dia anterior. Domingo é a sua primeira oportunidade para sair de Jerusalém, e aproveitaram bem - já estão voltando para a sua casa, desiludidos, decepcionados e sem perspectivas. A cena começa com a desintegração da comunidade cristã. Tudo acabou, a comunidade se dispersa, não há nem alegria nem esperança.

Quem eram eles? Sabemos do relato que um se chamava Cléofas! E o outro? O Evangelho de João nos conta que a irmã de Maria, mãe do Senhor, chamada Maria de Cléofas, estava junto à cruz (Jo 19, 25). Não seria demais acreditar que os dois discípulos era o casal, Cléofas e a sua esposa, voltando depois da peregrinação pascal à Jerusalém. Nunca saberemos com certeza, mas é uma hipótese agradável e possível. Pois, sendo assim, a descoberta da presença do Ressuscitado dar-se-á no lar e não em uma hospedaria anônima. Seria bem de acordo com a valorização na obra de Lucas da Igreja Doméstica, a Igreja que se reunia nas casas, como tantas Igrejas vivas de hoje.

De repente, no caminho surge Jesus, sem que seja reconhecido. Com isso, Lucas quer dizer que o Ressuscitado não é um defunto que voltou a viver – mas, tem uma nova maneira de ser, um corpo glorificado. É importante notar como Jesus se comporta, através dos verbos que Lucas usa. Ele “aproximou-se”, “caminhou com eles” e “perguntou”. Ele não veio “dando de dedo”, nem dando explicações bíblicas. Ele criou um ambiente de fraternidade onde fosse possível explicar tanto a vida como a Bíblia! Quantas vezes isso falta em nossos grupos, nossas comunidades - não nos aproximamos uns aos outros, mantemos distância! Não caminhamos juntos, queremos dar soluções sem conhecer a realidade dos nossos irmãos e irmãs! Por isso mesmo, muitas vezes não têm efeito as nossas reuniões, os nossos encontros bíblicos.

O “ato” termina com a pergunta d’Ele: “O que é que vocês andam discutindo pelo caminho” (v. 17), ou seja, Ele dá uma oportunidade para que eles exponham a sua realidade, sem julgamento, sem moralismo. Ele parte da realidade dos dois, conforme eles a experimentam, mesmo com análise equivocada.

Segundo Ato: vv 19b -24: “Os Discípulos Falam”

Diante da oportunidade de explicitar a sua realidade, Cléofas não titubeia. Ele expõe com clareza a sua situação. Diante da morte de Jesus ele frisa uma coisa importante: “nós esperávamos que Ele fosse o libertador de Israel” (v. 21). Eles “esperavam”, portanto, não esperam mais nada. Aqui ressoam traços de decepção, desilusão, desânimo, até de uma certa revolta contra Jesus, pois, todas as suas esperanças tinham sido desfeitas. Os seus sentimentos vão muito além de uma simples tristeza! Algo semelhante marca muita gente e muitas comunidades hoje – esperávamos um governo em favor do povo, e recebemos um golpe em favor da elite, agronegócio e lucro desenfreado! Esperávamos uma Igreja com os traços de Vaticano II e Medellín e em muitos lugares instalou-se uma Igreja clericalista, fechada em si, devocionalista, alienada e alienante, apesar de tantas comunidades comprometidas e o exemplo e os apelos do profeta de hoje, o Papa Francisco! É tentador – mas errado! – concluir que é melhor abandonar a luta e cultivar a resignação e a passividade, como foi a tentação dos dois discípulos.

É importante notar também que Lucas explicita bem quem foi que matou Jesus - não foi o povo, mas, grupos de interesse bem definidos: “Nossos chefes dos sacerdotes e nossos chefes o entregaram para ser condenado à morte, e o crucificaram” (v. 20). Para não reduzir a morte de Jesus a uma fatalidade qualquer ou a algo desejado pelo Pai, é necessário examinar mais profundamente esta afirmação do Cléofas. Jesus foi morto, assassinado judicialmente pelos “chefes dos sacerdotes” - um grupo de sacerdotes do partido aristocrático e conservador dos saduceus, que dominava o comércio do Templo, lucrando muito com a exploração do povo através da religião, e que viu a sua hegemonia ameaçada pela pregação e profetismo de Jesus. Também foi morto pelos “chefes” ou “magistrados”, ou seja, os membros do Sinédrio, o órgão do governo interno do povo judaico de Palestina, na maioria pertencente ao partido elitista dos saduceus (não dos fariseus), colaboradores com o poder romano, lucrando bastante com isso. Então Jesus foi morto não por acaso, mas para defender os privilégios da elite dominante! A cruz era a consequência lógica da vida de Jesus, da sua mensagem e atuação, que ameaçavam os privilégios das elites!

Outro elemento importante é o fato de que os dois sabiam do túmulo vazio - dois dos apóstolos já tinham verificado a história das mulheres. Mas, isso não dizia nada para eles! Aqui se destaca que a nossa fé não se baseia num túmulo vazio! É a nossa fé na Ressurreição que explica porque o túmulo estava vazio e não o túmulo que dá consistência à nossa fé!

Terceiro Ato: vv25-27: A Bíblia

Agora, e só agora, depois de ter criado o ambiente e escutado a realidade é que Jesus usa a Escritura. Ele frisa que eles “custam para entender e demoram para acreditar em tudo o que os profetas falaram” (v. 25). Notemos bem - não custaram para “saber”, mas para “entender e acreditar”. Pois, eram judeus piedosos, que, mesmo sendo analfabetos, conheciam muito bem os salmos e as profecias. O seu problema era que, embora conhecessem o livro da Bíblia, e também o livro da vida, eles não conseguiam ligar as duas coisas. Então, Jesus “explica” as escrituras - isso é, ele não dá uma aula de exegese, mas faz a ligação entre a vida deles e a Bíblia, iluminando a realidade deles com a Palavra de Deus!

Quarto Ato: vv 28-32: A Partilha

Chegando em Emaús, os discípulos convidam Jesus para entrar a e jantar com eles. Se realmente se trata de um casal, então seria entrar na sua casa, no aconchego do seu lar, e não em uma hospedaria, como normalmente a gente supõe. Aqui temos o ponto central da história – pois, até agora a explicação bíblica, por tão bonita que pudesse ter sido, não mudou a vida deles. Mas, agora sim. Jesus se põe à mesa e: “tomou o pão e abençoou, depois o partiu e deu a eles” (v. 30). De propósito, Lucas usa as palavras que recordam a Última Ceia. É a experiência da partilha, da comunidade! Agora o milagre acontece: “Nisso os olhos dos discípulos se abriram e eles reconheceram Jesus” (v. 31). Neste mesmo momento Jesus desaparece da frente deles! Por que? Porque, uma vez feita a experiência da presença do Ressuscitado no meio deles, eles não precisavam mais da “muleta” da sua presença física.

Agora eles caem dentro de si e reconhecem que: “Não ardia o nosso coração quando Ele nos falava pelo caminho, e nos explicava as Escrituras?” (v. 32). A Bíblia é capaz de fazer “arder o coração”, mas, para “abrir os olhos” é necessária também a experiência de comunidade, de celebração , de partilha!

Quinto Ato: vv 33-36: A Missão

Se a história terminasse aqui, seria a história de uma experiência bonita feita por duas pessoas. Isso não basta. Tal experiência da presença do Senhor Ressuscitado exige a formação de uma comunidade fraterna de vida: discipulado e missão. Os mesmos dois que de manhã fugiam de Jerusalém, pois, era o lugar da morte, da perseguição e do fracasso, de tarde se põem no caminho de volta! O que mudou em Jerusalém durante o dia? Nada! Continua sendo o lugar de perigo, de morte, de perseguição. Mas, mudou a cabeça dos dois. Em lugar de uma fé pré-pascal, eles agora têm uma fé pós-pascal. Em lugar de desânimo, há entusiasmo e coragem, pois experimentaram a presença de Jesus Ressuscitado. A história que começou com a comunidade se desintegrando termina com a comunidade se reintegrando, se unindo, na paz e na alegria, pois os discípulos puderam confirmar: “Realmente o Senhor ressuscitou, e apareceu a Simão” (v. 34). E os dois de Emaús puderam contar “o que tinha acontecido no caminho, e como tinham reconhecido Jesus quando ele partiu o pão” (v. 36).

Esta história pode servir para nós como paradigma de um círculo bíblico, grupo de reflexão, ou seja qual for o nome que nós damos às nossas pequenas comunidades. Jesus liga quatro elementos essenciais - a realidade, a Bíblia, a celebração partilhada e a comunidade. É na união entre estes elementos que se revela a presença do Ressuscitado e a vontade de Deus. É na interação destes aspectos da vida cristã que a Bíblia se torna: “Lâmpada para os meus pés, e luz para o meu caminho” (Sl 119, 105). Procuremos unir estes elementos nas nossas reuniões e encontros, e descobriremos como se concretiza o desejo do Salmista: “Oxalá vocês escutem hoje o que Ele diz” (Sl 95, 7)

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SEGUNDO DOMINGO DA PÁSCOA (23.04.17)

Jo 20, 19-31

“A Paz Esteja Com Vocês”

No texto anterior ao de hoje, a Maria Madalena traz a notícia da Ressurreição aos discípulos incrédulos. Agora é o próprio Jesus que aparece a eles. Não há reprovação nem queixa nas suas palavras, apesar da infidelidade de todos eles, mas, somente a alegria e a paz que Ele já tinha prometido no último discurso. Duas vezes Jesus proclama o seu desejo para a comunidade dos seus discípulos – “A paz esteja com vocês”. O nosso termo “paz” procura traduzir – embora de uma maneira inadequada – o termo hebraico “Shalom!”, que é muito mais do que “paz” conforme o nosso mundo a compreende. O “Shalom” é a paz que vem da presença de Deus, da justiça do Reino. O SHALOM pode ser definido como “o bem-estar total para todos/as” - é tudo que Deus deseja para os seus filhos e filhas. Tem muitas conotações de justiça social. Como disse o saudoso Papa Paulo VI, “A justiça é o novo nome da paz!” Jesus não promete a paz do comodismo, mas, pelo contrário, envia os seus discípulos na missão árdua em favor do Reino. Promete o shalom, pois, Ele nunca abandonará quem procura viver na fidelidade ao projeto de Deus.

Jesus soprou sobre os discípulos, como Deus fez (é o mesmo termo) sobre Adão, quando infundiu nele o espírito de vida. Jesus os recria com o Espírito Santo. Normalmente imaginamos o Espírito Santo descendo sobre os discípulos em Pentecostes, mas, aquilo era a descida oficial e pública do Espírito para dirigir a missão da Igreja no mundo. Para João, o dom do Espírito, que da sua natureza é invisível, flui da glorificação de Jesus, da sua volta ao Pai. O dom do Espírito neste texto tem a ver com o perdão dos pecados.

Mais uma vez, em um domingo, Jesus aparece aos discípulos (notem a ênfase sobre o Domingo – duas vezes). Esta vez, Tomé está presente. Ele representa os discípulos da comunidade joanina do fim do século, que estavam vacilando na sua fé no Ressuscitado, diante dos sofrimentos e tribulações da vida. Assim, nos representa, também, quando nós vacilamos e duvidamos. Jesus nos fortalece com as palavras: “Felizes os que acreditaram sem ter visto!” Essa muitas vezes será a realidade da nossa fé – acreditar contra todas as aparências que o bem é mais forte do que o mal, a vida do que a morte! Somente uma fé profunda e uma experiência da presença do Ressuscitado vão nos dar essa firmeza.

Tomé confessa Jesus nas palavras que o Salmista usa para Javé (Sl 35, 23). No primeiro capítulo do Evangelho de João, os discípulos deram a Jesus uma série de títulos que indicaram um conhecimento crescente de quem Ele era; aqui Tomé lhe dá o título final e definitivo – Jesus é Senhor e Deus!

Nessa proclamação triunfante da divindade de Jesus, o Evangelho original terminava. (O Capítulo 21 é um epílogo, adicionado mais tarde). No início, João nos informou que “o Verbo era Deus”. Agora ele repete essa afirmação e abençoa todos os que a aceitam, baseados na fé! A meta do Evangelho foi alcançada – mostrar a divindade de Jesus para que, acreditando, todos pudessem ter a vida n’Ele.

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DOMINGO DE PÁSCOA (16.04.17)

Jo 20, 1-9

“Ele viu e acreditou”

Os quatro evangelhos relatam os acontecimentos do Dia da Ressurreição, cada um de acordo com as suas tradições. Mas, certos elementos são comuns a todos: o fato do túmulo vazio, que as primeiras testemunhas eram as mulheres (embora divirjam quanto ao seu número e identidade e o motivo da sua ida ao túmulo - para ungir o corpo, ou para vigiar e lamentar), e de que uma delas era Maria Madalena. Podemos tirar disso a conclusão que as mulheres tinham lugar muito importante entre o grupo dos discípulos de Jesus, e que elas eram mais fiéis do que os homens, seguindo Jesus até a Cruz e além dela! Infelizmente, outras gerações fizeram questão de diminuir a importância das discípulas na tradição – e a Igreja sofre até hoje as consequências.

Lendo os relatos, um fato salta aos olhos – ninguém esperava a Ressurreição. Para os discípulos, a Cruz era o fim da esperança, a maior desilusão possível. Se somarmos a isso o fato que todos os Doze traíram Jesus (ou por dinheiro, ou por covardia), podemos imaginar o ambiente pesado entre eles na manhã do Domingo. Nesse meio, chega a Maria com a notícia de que o túmulo estava vazio - e ela, naturalmente, pensa que o corpo tinha sido roubado. Ressurreição - nem pensar!

No nosso texto, Pedro (que tem um papel importante nos textos pós-ressurrecionais) e o Discípulo Amado (anônimo, mas quase certamente não um dos doze) correm até o túmulo. O texto deixa entrever a tensão histórica que existia entre a comunidade do Discípulo Amado e a comunidade apostólica (representada por Pedro). Pois, o Discípulo Amado espera por Pedro (reconhece a sua primazia), mas enquanto Pedro vê sem acreditar, o Discípulo Amado acredita. No Quarto Evangelho, Pedro só realmente vai conseguir amar Jesus no Capítulo 21, enquanto o Discípulo Amado é o tal desde Capítulo 13. Só quem olha com os olhos do coração, do amor, penetra além das aparências!

Como em Lucas 24, na história dos Discípulos de Emaús, o texto demonstra que a nossa fé não está baseada num túmulo vazio! Não é o túmulo vazio que fundamenta a nossa fé na Ressurreição, mas o contrário - é a experiência da presença de Jesus Ressuscitado que explica porque o túmulo está vazio! Cuidemos de não procurar bases falsas para a nossa fé no Ressuscitado!

Hoje, quando olhamos para o mundo ao nosso redor, é fácil não acreditar na vitória da vida sobre a morte. Há tanto sofrimento e injustiça - guerra, violência, corrupção endêmica, salários minguados, aposentadorias (dos trabalhadores, claro, não da elite!) ameaçadas, saúde e educação sucateadas, sem falar de desastres naturais! Só uma experiência profunda da presença de Jesus libertador no meio da comunidade poderá nos sustentar na luta por um mundo melhor, com fé na vitória final do bem sobre o mal, da luz sobre as trevas, da graça sobre o pecado! Nós todos somos discípulos amados, pois “nada nos separa do amor e Deus em Jesus Cristo” (Rm 8), mas, será que somos discípulos amantes? Será que amamos a Jesus e ao próximo? Lembramos que o ágape, o amor proposto pelo Evangelho, não é um sentimento, mas uma atitude de vida, de solidariedade, de partilha, de justiça. “O amor consiste no seguinte: não fomos nós que amamos a Deus, mas foi Ele que nos amou, e nos enviou o seu Filho como vítima expiatória por nossos pecados. Se Deus nos amou a tal ponto, também nós devemos amar-nos uns aos outros” (1Jo 4, 10-11).

Que a mensagem da Ressurreição, da vitória da vida sobre a morte, nos anime e dê força, especialmente quando a Cruz pesar muito em nossas vidas!

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DOMINGO DE RAMOS (09.04.17)

Mt 21, 1-12; Mt 26, 14 – 27, 66

Bendito aquele que vem em nome do Senhor!

Neste primeiro dia da Semana Santa, com certeza não há comunidade católica no Brasil que não celebre, com muito entusiasmo, a comemoração da entrada de Jesus em Jerusalém. Organizam-se procissões e encenações, e quase todos fazem questão de levar alguns ramos bentos para a casa.

Porém, é muito importante resgatar o verdadeiro sentido da entrada de Jesus em Jerusalém, para que possamos celebrar a festa com mais profundidade. O próprio Evangelho de Mateus nos dá uma dica, quando em v. 5 cita o profeta Zacarias. Pois, Jesus, escolhendo entrar na capital desta maneira, estava fazendo uma releitura de Zacarias 9, 9-10. O profeta (conhecido como Segundo Zacarias, pois, capítulos 9-14 do livro são pós-exílicos) vivia numa situação de grande opressão e pobreza, quando Palestina e o seu povo eram dominados pelo Império Grego, depois de Alexandre Magno. O profeta procura animar o seu povo oprimido, manter viva a chama de resistência através da esperança na chegada de um Messias, que teria três grandes características: seria rei (9, 9-10), bom pastor (11, 4-17) e “transpassado” (12, 9-14). Portanto, quando Jesus e os seus discípulos fizeram a sua entrada em Jerusalém; era uma maneira forte de proclamar a chegada do Messias, do Rei esperado pelos pobres de Javé. Era gesto profético de esperança, algo tão necessário no ministério das Igrejas hoje, infelizmente muito marcadas pela ameaça, frequentemente com mais ênfase sobre o mal do que sobre o bem, de uma suposta dominação de “demônios” e não pela certeza da vitória da graça e da redenção.

Mas, o rei proclamado por Zacarias e concretizado em Jesus era bem diferente dos reis dos países de então. Enquanto estes faziam questão de apresentar-se publicamente com toda a pompa, montados sobre cavalos imponentes, o rei previsto por Zacarias iria entrar em Jerusalém montado em um jumento – o animal do pequeno agricultor. Pois, o seu reino seria, não de dominação, opulência e opressão, mas, de paz, de justiça e de solidariedade: “Dance de alegria, cidade de Sião; grite de alegria, cidade de Jerusalém, pois, agora o seu rei está chegando, justo e vitorioso. Ele é pobre, vem montado num jumento, num jumentinho, filho de uma jumenta. Ele destruirá os carros de guerra de Efraim e os cavalos de Jerusalém; quebrará o arco de guerra. Anunciará a paz a todas as nações, e o seu domínio irá de mar a mar” (Zc 9, 9).

A entrada em Jerusalém de Jesus era verdadeiramente uma entrada triunfal – mas, do triunfo de Deus, do Messias dos pobres e justos, e uma reviravolta nos valores da sociedade. Era a rejeição dos valores opressores dos Reinos mundanos, a celebração de Javé, o libertador, que “ouve o clamor dos pobres e sofridos” (Êx 3, 7). Celebrar a memória deste evento no Domingo de Ramos deve nos levar a um cumpromisso maior com a construção de um mundo de paz verdadeira, fruto de justiça, partilha e solidariedade. Quando falamos da entrada triunfal, lembremo-nos que é o triunfo da fraqueza de Deus, da Cruz, do projeto do Reino, pois como disse Paulo, “a loucura de Deus é mais sábia do que os homens e a fraqueza de Deus é mais forte do que os homens” (1Cor 1, 25). Cuidemos de não transformar a celebração litúrgica em folclore, centada na figura do padre, glorificando o poder e a dominação, fazendo o que fizeram em Jerusalém, conforme o hino: “Queriam um grande Rei que fosse forte, dominador e por isso não creram n’Ele e mataram o Salvador”.

A celebração de Domingo de Ramos é realmente uma das vitórias, mas, da vitória que vem de fidelidade ao projeto de Deus, no seguimento de Jesus, até a Cruz e à Ressurreição. Evitemos criar uma caricatura de Jesus como Rei poderoso, conforme os padrões da nossa sociedade, e procuremos recuperar a finalidade da ação profética de Jesus – reacender a esperança dos excluídos, marginalizados, pobres e oprimidos, assumindo cada vez mais ações concretas na busca da construção da “Terra Sem Males”. Um desafio muito grande para quem tem qualquer ministério nas Igrejas, ordenado ou não, pois o nosso modelo – como o Papa Francisco nunca cansa de nos lembrar - é o “anti-rei”, Jesus de Nazaré, e não as autoridades pomposas deste mundo.

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QUINTO DOMINGO DE QUARESMA (02.04.17)

Jo 11, 1-45

“Eu sou a Ressurreição e a Vida”

Para entender melhor este texto, temos que situá-lo no seu contexto dentro do Quarto Evangelho, o do Discípulo Amado. Cumpre lembrar a divisão literária e teológica deste Evangelho. Nele, os primeiros onze capítulos formam que é normalmente intitulado “O Livros dos Sinais”, ou seja, relatam sete sinais (tradução melhor do que “milagres”) operados por Jesus. Um sinal aponta para algo mais além, e os sinais relatados por João apontam para uma realidade mais profunda – eles revelam algo mais profundo sobre a pessoa e missão de Jesus. São: a mudança de água em vinho em Caná (2, 1-11), a cura do filho de um funcionário real (4, 46-54), a cura do paralítico em Betesda (5, 1-18), a partilha de pães (6, 1-15), caminhar sobre as águas (6, 16-21), a cura do cego de nascença (9, 1-41), e o sinal culminante, a Ressurreição de Lázaro (11, 1-45), o texto de hoje. Como bloco, formam o Livro dos Sinais, preparação para Capítulos 13-20, o Livro da Glorificação.

Nos desafiam a ir por trás das palavras e imagens, ou seja, não parar no visível, mas descobrir o que sinalizam sobre a pessoa e missão de Jesus – portanto, a nossa missão também. Assim, devemos sempre ter presente que o relato de um sinal sempre quer revelar algo sobre Jesus. Diferente dos milagres em Marcos, onde não se faz milagre a não ser que já se tem a fé em Jesus, os sinais em João revelam uma verdade sobre Jesus e levam as pessoas a aprofundar a sua fé n’Ele. Assim, no texto de hoje, não devemos centralizarmo-nos sobre a pessoa de Lázaro, ou sobre os pormenores da história, mas, descobrir o que João quer dizer sobre a pessoa de Jesus e a sua missão, através do texto.

Talvez possamos dizer que o centro do relato se encontra nos versículos 21-27. Partindo da fé na ressurreição dos mortos, já corrente desde o tempo dos Macabeus entre as camadas populares do judaísmo, mas, rejeitada pela classe dominante dos saduceus, João tece um diálogo entre Jesus e Marta, que culmina com a declaração que a Ressurreição e a Vida acontece através da fé n’Ele, o Enviado de Deus, que veio para que todos tivessem plena vida, dando a sua vida para que isso acontecesse (Jo 10, 10-11). Vale notar que, no Evangelho de João, a primeira pessoa a professar fé no messianismo divino de Jesus é uma mulher, Marta. Nos Sinóticos, isso cabe a Pedro (Mc 8, 29). Como a cegueira do cego de nascença servia para que a glória de Deus fosse revelada através da sua cura, revelando Jesus como Luz do mundo (Jo 9, 3-5), a morte de Lázaro serve para revelar Jesus como Ressurreição e Vida (11, 25-27).

Jesus traz esta Vida para todos, através da entrega da sua própria vida. Pois, o relato de João enfatiza que Ele dará a sua vida para que todos tenham a vida eterna, colocando na boca do Sumo Sacerdote a frase famosa: “É melhor um homem morrer pelo povo do que a nação toda perecer” (11, 50). A libertação total que Jesus trouxe não acontece sem que Ele se esbarre contra os interesses dos poderosos da sociedade que procurarão conter esta libertação, matando-O. É a maneira joanina de dizer a verdade que Marcos sublinha quando ele faz Jesus dizer “se alguém quer me seguir, renuncie a si mesmo, tome a sua cruz e siga me” (Mc 8, 34). A verdadeira vida exige luta contra tudo que é de morte, de dominação, de exploração, de exclusão.

Notemos que, no fim da história, Lázaro é desatado dos panos e sudário – pois Ele vai precisá-los de novo, pois ainda passará pela morte! A Ressurreição de Jesus, que logo celebraremos, é diferente. Cap. 20 de João faz questão de mencionar que, quando os discípulos entram no túmulo vazio, eles veem o sudário e os panos no chão – pois Jesus não foi simplesmente ressuscitado, mas passou pela Ressurreição, para a vida definitiva! O que aconteceu com Lázaro simplesmente prefigura o que aconteceria com Jesus de uma maneira mais definitiva, e por conseguinte, a todos nós. Que a nossa fé n’Aquele que é “a Ressurreição e a Vida”, que veio “para que todos tenham vida e a vida plena” nos leve, não à religião intimista e individualista, sem maiores consequências na vida comunitária, social, política e econômica, mas, a um engajamento na construção do mundo que Deus quer, o mundo da verdadeira “Shalom” – um conceito que vai muito além do sentido do termo Português “paz”, para indicar a plenitude do bem-estar, tudo que Deus deseja para todos os seus filhos e filhas, como nos lembra o tema do programa catequético-bíblico da CNBB nestes quatro anos: “Para que n’Ele nossos povos tenham vida”, o que implica levar a sério a Campanha da Fraternidade deste ano, em defesa dos biomas brasileiros (Amazônia, Caatinga, Cerrado, Mata Atlântica, Pantanal, Pampa), elementos essenciais para uma vida plena.

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Pe. Tomaz Hughes, SVD

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