Aylê-Salassié F.
Quintão*
A questão parece tão
óbvia! Saber ler e escrever é
prerrogativa suficiente para que
qualquer cidadão brasileiro se
qualifique para candidatar-se a
presidente da República,
governador, senador, deputado,
prefeito, vereador ou ocupar
cargo na administração pública.
Basta estar em dia com as
exigências eleitorais. Formação
acadêmica e experiência
conquistada profissionalmente
são praticamente ignoradas pelas
recomendações legais. Contam
para um ou outro eleitor, na
hora de votar. Por isso, quase
toda eleição é ganha no grito.
Considera-se
que, para além da escrita e da
leitura, a
vida social cotidiana, pulsando
contínua, gera conhecimentos,
idéias e soluções, capazes de
qualificar o cidadão, o
bastante para ocupar um lugar
na sonhada democracia
participativa.
Não haveria, portanto,
dúvidas quanto à legitimidade do
sujeito
não letrado ocupar um cargo de
representação popular, na
administração pública e até
chegar a ser Presidente da
República. De acordo com o
professor José Aleixo, da
UnB, “...o voto do analfabeto
vale também para a elegibilidade
da pessoa analfabeta”.
Parece consensual no Brasil o
reconhecimento do cidadão
conhecedor dos problemas
regionais ou comunitários, com
facilidade para concatenar
idéias e opiniões, independente
de serem ou não fantasiosas.
Pesquisas pedagógicas do INEP/IBGE/Unesco/União
Européia revelam que o saber
ler e escrever envolve, no
Brasil, perto de 14 milhões de
analfabetos absolutos – apenas
escreve o nome - e 36 milhões de
alfabetizados funcionais,
pessoas que não conseguem
compreender o que lêem, nem
fazer operações matemáticas
simples. Contudo, “Se o filho de
pai e mãe analfabetos chegou a
presidente da República, aqueles
que quiserem podem chegar muito
mais alto do que os livros
dizem. É só ter vontade."
Evidente que o auto
referenciamento aponta para a
possibilidade aberta dentro da
democracia participativa. Na
realidade, com a estrutura
política e econômica de hoje,
um discurso com esse conteúdo
não passa de uma fantasia, um
conto de fadas, com direito a
coroa e carruagem.
No mundo
político, dos sonhos e
devaneios, a realidade não
contempla aquilo que foi chamado
pela antropologia de “sociedade
complexa”, que se complicou
ainda mais com a chegada da
globalização, e que requer, em
qualquer país sério, pessoas
qualificadas cientificamente e
o domínio de tecnologias
sofisticadas, capazes de
estabelecer diálogos lógicos e
conexões estruturadas entre
diferentes áreas.
Em um “País bonito por
natureza e abençoado por Deus”
não há necessidade disso.
Empossado, o vencedor nas
eleições, tenha ou não
qualificação científica ou
histórico de administrador,
sabendo ler e escrever, é logo
investido do Poder abstrato de
um chefe de Estado
(representação da Nação),
acumulando-o com o da chefia do
Governo ( gestão superior dos
recursos e políticas públicas).
O sujeito assume, de imediato, a
gestão de um PIB de US$ 4
trilhões, de um país maior
produtor de grãos do mundo, de
reservas de US$ 350 bilhões,
responsável pela segurança e
integridade de um território de
8 milhões de Km2, pelo resguardo
de 15.179 mil km de fronteiras
com 10 países, de 7.367 km de
limites marítimos, de um mar
territorial de 12 milhas, além
de uma zona econômica exclusiva
de 200 milhas. Cabe a ele também
a preservação da soberania
nacional, a prerrogativa de
relacionar-se diretamente com 68
países estrangeiros em nome da
segurança de uma população de
210 milhões de pessoas, ficando
ainda a seu critério apresentar
planos de desenvolvimento com
programas prioritários para mais
de 200 áreas sensíveis,
sancionar leis, diretrizes
orçamentárias e propostas de
orçamento trilionário.
Tudo isso
reunido é de uma complexidade
tão grande que torna difícil
entender como saber apenas ler
e escrever seja mantido como
prerrogativa básica para alguém
assumir à Presidência da
República num País com essas
proporções. Um cidadão ou uma
cidadã com um poder desses
confunde tudo, e torna-se,
inevitavelmente, presa fácil,
primeiro, dos próprios sonhos;
segundo, dos interesses privados
face à grandiosidade da riqueza
contida num PIB nacional; e
terceiro, dos partidos
políticos que, como bandos de
urubus, tentam se aproveitar
privadamente das virtudes da
Nação, ou repartir a riqueza
sem qualquer respeito ao
esforço individual, à capacidade
reprodutiva e educativa do
trabalho.
Quem estaria então
habilitado a governar? Platão,
Sócrates e Aristóteles chegaram
a discutir e discordar entre si
sobre o governo dos sábios, de
uma tecnocracia. Popper inspirou
movimentos autoritários , e
Lênin enterrou as esperanças de
um sujeito que sabe apenas ler e
escrever e quer chegar ao Poder,
ao falar da vanguarda
revolucionária. Enfim, a
discussão é ainda ampla.
Contudo, um iletrado que se
conduz, pelos sonhos, à frente
do Estado, além do risco de ter
problemas graves de saúde, de
alguma maneira vai comprometer,
em algum momento, toda a Nação.
Exemplo: Maduro, na Venezuela.
O brasileiro precisa
prevenir-se, aprendendo a
conviver e identificar as
ortodoxias, as ideologias e,
sobretudo, as fantasias. O
preço pago pelos erros é muito
alto.
*Jornalista e professor