Theresa Catharina de Góes Campos

     
Romper padrões nefastos de administração pública

Ela escreveu para a Revista de Administração Pública em fevereiro de 1990. No entanto, suas palavras continuam a me fascinar até hoje, 28 anos depois. E, a cada leitura, surgem novos conceitos em seu artigo: “Accountability: quando poderemos traduzi-la para o português?” Sempre atual, uma vez que em matéria de Políticas Públicas, não saímos ainda da Idade Média. Ausente que está, em sua formulação e avaliação, o sujeito das demandas: o usuário dos serviços públicos.

O que seria o accountability de tão difícil tradução na nossa língua? Seria a responsabilidade objetiva. Não oposto, nem incompatível, mas perfeitamente e obrigatoriamente agregado à responsabilidade subjetiva. O detentor de função pública, necessariamente, obrigatoriamente, deve se reconhecer responsável por suas atribuições. E responder perante outras pessoas, por seu desempenho. Segundo Frederich Mosher citado por Anna: “Quem falha no cumprimento de diretrizes legítimas é considerado irresponsável e está sujeito a penalidades”. E Anna explica: quanto mais avançado o estágio democrático, maior o interesse pelo acountability. E o accountability governamental tende a acompanhar o avanço de valores democráticos, tais como igualdade, dignidade humana, participação, representatividade.

Nesse tempo de promessas de mudanças, no qual se tenta romper padrões nefastos de administração pública, evitando o loteamento da máquina burocrática de governo, cabe questionar: até que ponto esta ruptura de padrões representará, efetivamente, a emergência dos valores democráticos de gestão pública?

Isto porque, afirma Anna, o desenvolvimento de mecanismos burocráticos de controle não tem sido suficiente para garantir que o serviço público sirva, efetivamente, a sua clientela de acordo com os padrões normativos do governo democrático. “Há de se transcender a economia, a eficiência e a honestidade, enquanto valores essenciais e alcançar a qualidade dos serviços; a maneira como são prestados; a justiça na distribuição de benefícios; a distribuição dos custos políticos, sociais e econômicos dos serviços e bens produzidos.” E, um valor fundamental, a adequação dos resultados dos programas às necessidades das clientelas.

E, pergunta Anna, quem vai fiscalizar? Isto porque, afirma: “O controle democrático, portanto, não pode ser eficaz se limitado à estrutura do Executivo.” Quem controla o controlador? É uma questão fundamental! Não é nova. Mas é atualíssima! Basta observarmos o modo como são tratados no Brasil, os usuários dos serviços públicos. Se atentarmos na desigualdade das relações de poder entre instituições, funcionários e os demandantes das Política Públicas. Estamos tratando, portanto, de um ponto essencial, insubstituível, na avaliação das Política de Governo em relação aos mecanismos de controle: “a participação da sociedade civil na avaliação das políticas públicas, fazendo recomendações a partir dessa avaliação.”

Se o cidadão brasileiro, através da cidadania organizada de que nos falava Pedro Demo, não estiver presente na avaliação das Políticas, a situação não mudará. Pois quem vive a realidade do atendimento público é o usuário. Ele é o sujeito no qual desaguam a falta de respeito, a alienação, a burrice, a indiferença, a ineficiência dos serviços. É o corpo dele e o seu espírito que levam para casa a humilhação, os erros e a defasagem de resultados ente os planos de gabinete e a realidade.

Não tem sentido ou fundamento falar de democracia, enquanto o cidadão brasileiro não se organizar, consciente de seus direitos e vigilantes, como diria Anna. Neste sentido da participação, muitos anos atrás, os sanitaristas no Ministério da Saúde criaram os grupos de representação dos usuários nas unidades de saúde. Surgiram os Conselhos Fiscalizadores junto às Prefeituras. Estudos realizados pelo Serviço Social demonstraram que muitos foram cooptados pelos interesses corporativistas dos gestores, perdendo a independência. É deste tipo de sociedade que estamos falando, em pleno século 21.

Portanto, a ruptura com padrões de gestão deve significar um passo além na democratização das relações entre cidadão e Estado. E a arena desta luta são as políticas públicas. Trata-se do fortalecimento da teia de relações da sociedade civil, controlando e avaliando o Estado. Contribuindo para a evolução dos serviços. Neste sentido, é necessária a redefinição da relação entre cidadão e sociedade. Não mais entre um povo tutelado e um Estado tutor. Os usuários dos serviços públicos vistos não como consumidores, objetos das decisões governamentais, mas como sujeito ativo de seus direitos. Democracia é isto, nos relembra Anna, cuja voz nunca esteve tão atual, passados 28 anos, neste país desigual e alienado. Saudades de Anna Maria Campos!

LUÍZA CAVALCANTE CARDOSO
 

Jornalismo com ética e solidariedade.