Theresa Catharina de Góes Campos

     
Sobre " O Arraial de Dores do Campo Formoso " - Reynaldo Domingos Ferreira
 
De: Reynaldo Ferreira
Date: qua, 8 de mai de 2019

Aylê Salassié,

 
Grato, pelo comentário sobre o meu mais recente livro, " O Arraial de Dores do Campo Formoso ". Vou fazer tudo para não ficar por demais envaidecido por ele, principalmente, pelo fato de, nele, você me chamar de " grande fofoqueiro", que sou, realmente, pois todos nós, que praticamos a escrita, como já disse, no meu livro anterior, " Farsantasias ", no fundo, no fundo, o somos. E não só fofoqueiros, mas também intrigantes, pois, no plano ficcional, criamos intrigas.

 
Sim, uso um modelo extraído de um romance de Dostoiévski, um dos autores, que mais admiro. Não sei como uma criatura, como ele, epiléptico, jogador inveterado - conheço também o " Diário Íntimo", de sua segunda mulher -, que esteve preso, na Sibéria, por insurgência contra o Czar, foi capaz de criar tanta beleza. Parece milagre, já que ele era também muito religioso, tanto, que seus livros foram expurgados das livrarias, durante o regime soviético. Como Boris Schneiderman, um dos maiores tradutores de sua obra, entre nós, acho difícil dizer quais são seus livros mais marcantes. Ou os meus preferidos. 

 
Não conhecia ainda " A Aldeia de Stepantchikovo e seus Habitantes", só recentemente traduzido para o português, diretamente do russo,  cuja narrativa, diferente das de suas outras obras, tem, sim, caráter cômico, irônico, uma vez que é evidente a influência, em sua elaboração, de uma das obras-primas de Molière, " Tartufo". Eis a razão, pela qual, tendo deixado a prisão, na Sibéria, Dostoiévski retornou à sua cidade natal, São Petersburgo, cheio de planos e ideias, na cabeça. 

 
Na verdade, Dostoiévski queria escrever uma peça de teatro, mas desistiu, pois sem conhecer a técnica específica - embora seus romances sejam, como mostra Mikhael Backthine, num magnífico ensaio sobre sua obra, estruturados em diálogos -, ele temeu a concorrência com dois mestres do gênero, seus contemporâneos, Gogol e Tchekhov. Em vista disso, em 1910, o ator e diretor Nikita Astakhov fez uma adaptação do romance ao teatro, complementando-o, com um conto, também de Dostoiévski, intitulado " Bobok".

 
Não foi esse o meu caso. Não fiz uma adaptação do romance. Inspirei-me apenas na ideia, e em alguns personagens, criei outros, transpondo a ação para o nosso meio - no caso, para o Arraial de Dores do Campo Formoso ( antigo nome de Campo Florido ), que fica a setenta quilômetros, de Uberaba. E por que fiz isso?... Porque sou dos que acreditam que a afetividade liga as pessoas aos lugares, em que elas existem. Ou, como diz Michel Maffesoli " o gênio do lugar é que fortalece a gente, que dele faz parte".

 
De fato, se você ler a obra de Tennessee Williams, vai logo perceber que suas personagens são fortemente marcadas pelo lugar do qual fazem parte, New Orleans, principalmente em" Um Bonde Chamado Desejo". No caso da obra de Arthur Miller, é Nova York, o Brooklin - onde ele viveu - e principalmente a região do antigo porto da cidade, onde se encontrava com estivadores para, no inverno, participar de rodadas de uísque, a fim de se esquentarem. Foi lá que conheceu um deles, 
o qual lhe serviu de modelo, para criar o personagem Eddie Carbonne, protagonista de " O Panorama Visto da Ponte".

 
Você tem razão, quando diz que a interpretação ( dos atores ) poderá fazer a diferença. Foi justamente isso que aconteceu com Arthur Miller, quando, em Roma, viu Raff Vallone, um italiano autêntico, e grande ator, no papel de Eddi Carbonne. E não só a interpretação dos atores, digo eu, mas também a concepção dos diretores. O texto teatral tem de ceder espaço para todos eles. O monólogo final, portanto, tem a função, primeiro, de manter o formalismo da linguagem narrativa de Dostoiévski, o que me parece sumamente importante. Em segundo lugar, não só transpõe a questão temporal, como ajuda ao espectador a criar o seu distanciamento, em relação à ficção, tal como proposto por Bertholt Brecht, e ainda definir, a seu critério, o final da peça, que fica em aberto.

 
Por fim, como você diz, o tio Dídimo me parece - tenho recebido manifestações, nesse sentido - uma personagem sedutora, que vem conquistando plateia, antes mesmo de subir ao palco, o que não sei se, um dia,  acontecerá, pois atores e diretores brasileiros não gostam de autores brasileiros. A reforma da Lei Rouanet poderia impor isso: prioridade para montagens de autores nacionais. Obrigado pelo convite para concorrer a uma vaga na Academia de Letras do Brasil, mas não me vejo como acadêmico. Já recebi outros convites semelhantes, os quais recusei. Forte abraço, Reynaldo.
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Em domingo, 5 de maio de 2019, ayle quintão <
ayleq@yahoo.com.br> escreveu:

Reynaldo,

 Acabei de ler " O Arraial de Dores do Campo Formoso ". Você é um craque. No fundo um grande fofoqueiro. Já tentei escrever coisas assim, mas não consigo. Li o “Arraial” com o propósito de tirar delas algumas lições. Certamente o fiz e o farei. Você usa um modelo dostoiesquiano. Não tenho um. Sou cheio de teorias da história e da sociologia que me fazem tropeçar no meio. Mas o “Arraial” dá algumas luzes, inclusive de originalidade. Como disse a Theresa Catharina, vi nele mais um drama que uma comédia. Passei a admitir, entretanto, que a interpretação(dos atores) poderá fazer a diferença.

 Achei o Epílogo longo, e até presumi que ele poderia ter feito parte dos diálogos. Você teria disponível, além da palavra do narrador, imagens (animadas) do ambiente, música, gestos e até alguns jeitos e trejeitos dos personagens. Vi também você dentro do texto quando faz citações eruditas (não muitas), e faz referência a Uberaba: isso tira o “Arraial” da imaginação criativa do leitor . Contudo, meu amigo, você está de parabéns . Como você, não dá para esquecer tão cedo o tio Dídimo.

Você não faz parte de alguma Academia de Letras por aqui. A Academia de Letras do Brasil (ALB) vai abrir oito vagas, decorrentes de acadêmicos que bateram as botas recentemente. Se tiver interessado, posso lhe indicar. De qualquer maneira, o nome e a obra serão examinados e votados pelos acadêmicos em exercício. Nada de assustar, nem muito complicado.

E last but not least, pensei em encontrar no texto algo relacionado ao Lula. Mas, você está certo: sair à busca de personagens novos. O boquirroto parece esgotado. Não parece ter nada mais a dizer. Pelo menos é o que mostrou a (indigna) entrevista dele para a Folha. Melhor esquecê-lo, e deixar que a história se encarregue de enterrá-lo.
(...)Abraços, meu caro. 
 

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