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Artigo publicado no Correio Braziliense,
pela colunista CIRCE CUNHA, em 7 de agosto 2020:
INVERSÃO DE VALORES PERMANECE DEPOIS DE SÉCULOS
Nunca, em tempo algum, a observação feita por
Rui Barbosa (1849-1923) sobre a inversão de
valores éticos entre as elites que comandavam os
poderes da República, em sua época, fez tanto
sentido como agora. Dizia ele: “De tanto ver
triunfar as nulidades; de tanto ver prosperar a
desonra, de tanto ver crescer a injustiça. De
tanto ver agigantarem-se os poderes nas mãos dos
maus, o homem chega a desanimar-se da virtude, a
rir-se da honra e a ter vergonha de ser
honesto.”
A sentença, que parece resumir toda a epopeia
brasileira desde 1500, foi feita em discurso no
Senado Federal em 1914, e seu alvo era
justamente a falta de ânimo da Justiça em punir
os poderosos. Para ele, “a maior de todas as
ruínas é a ruína da justiça”, principalmente
aquela “colaborada pela ação dos homens
públicos.” Rui Barbosa ia mais além em seu
libelo, acusando os partidos de seu tempo e,
principalmente, o governo de influenciarem
constantemente as decisões da justiça em favor
dos poderosos.
Nada diferente do que ocorre exatamente nesse
instante, com o Supremo agindo, seguidamente, em
favor de abolir penas quando o réu é alguém
conhecido e poderoso e com conexões diversas e
preciosas dentro da máquina do Estado. Rui
Barbosa dizia, há mais de um século, a mais
grave de todas as ruínas era a “falta de
penalidades aos criminosos confessos”, assim
como a “falta de punição quando se aponta um
crime que envolve um nome poderoso, apontado,
indicado, que todos conhecem”.
São observações proféticas e que servem hoje
como uma luva no que vem ocorrendo nesse
instante, quando juízes e um conjunto pequeno de
procuradores do Ministério Público ousaram, por
meio da já famosa Operação Lava Jato,
investigar, julgar e condenar uma parte enorme
de políticos da nossa história atual, reunida de
uma só vez para assaltar o erário.
Essa imensa e poderosa quadrilha, formada por
políticos dos mais altos escalões, inclusive
presidentes da República, aliados aos mais ricos
e influentes empresários do país, foi, um a um,
encaminhado às penitenciárias, inaugurando assim
uma etapa totalmente nova e extraordinária de
nossa história.
Questões levantadas por muitos internautas, que
acompanharam de perto o desenrolar das
revelações obtidas por meio de escutas ilegais e
divulgadas pelo site The Intercept Brasil,
mostram, de forma clara, que boa parte da
opinião pública que trafega nas redes sociais
não apenas vem pondo em dúvida a integridade
desses diálogos, como passou a estabelecer, por
conta própria, as conexões entre os diversos
fios soltos.
O que se tem nesse episódio é que milhares de
investigadores, amadores online e por todo o
país, passaram a investigar o caso e a divulgar
cada passo em falso e cada pequeno detalhe
deixado para trás pelos denunciantes. Num país
que, desde 2005, vive em permanente estado de
atenção e onde a realidade política se mistura
com a ficção do realismo fantástico, o
surgimento de mais esse sub enredo, dentro do
mega escândalo levantado pela Operação Lava
jato, reacendeu o interesse do público sobre a
tragédia da corrupção.
Com isso, o público, desde aquele tempo, vem
interagindo com o desenrolar de todo enredo
sobre corruptos e ditadores, o que pode levar a
um desfecho imprevisível dessa trama. O material
colhido até agora sobre esses casos já possui um
volume de informação considerável. Quem
acompanha as notícias está certo de que há trama
de todos os lados para desmanchar a Operação
Lava Jato, por meio de uma campanha visando
desacreditar seu principal juiz.
Muitos afirmam, inclusive, que, se os bandidos
revelados por essa Operação combinavam
minuciosamente o esquema que os levariam aos
cofres públicos, por que os agentes da lei não
poderiam fazer o mesmo, já que se tratava, no
caso, de defender o Estado de uma bem engendrada
organização criminosa?
Para conferir mais surrealismo a toda história
tecida neste país, vale lembrar o desfecho de um
tal site intitulado Pavão Misterioso, que
divulgava supostos diálogos entre o deputado JW,
que teria vendido o cargo, para o marido de
Glenn Greenwald. Neles, o ex-parlamentar cobra
parcela do dinheiro devido e que não estaria
sendo honrado por conta das fiscalizações feitas
pelo COAF nas movimentações financeiras desse
trio. Volta e meia, JW volta às redes sociais
com questões dos internautas sobre o
desaparecimento repentino e definitivo do
deputado que abriu mão de ser representante dos
seus eleitores.
A população que a tudo assiste, ao vivo e a
cores, chegou a acreditar que, com a Operação
Lava Jato, o Brasil finalmente adentrava numa
nova e virtuosa fase de sua história. Durou
pouco a esperança da sociedade de que finalmente
iria haver uma mudança radical de rumos. Por
ação justamente daqueles mesmos sujeitos
apontados há mais de um século por Rui Barbosa,
em seu famoso discurso de 1914, o castelo de
cartas vem sendo posto abaixo agora, diante de
nossos olhos, e graças à inércia daqueles que
poderiam agir a tempo de cessar essa verdadeira
contrarreforma do antigo regime de impunidade.
Uma leitura nos jornais diários dá conta de que
a Hidra da corrupção, com seus aliados, ainda
está viva e se move.
Depois de sepultar qualquer possibilidade de
condenação com o fim da prisão em segunda
instância, e depois de mandar soltar todos os
criminosos do colarinho branco, o Supremo, que
tudo pode, tudo executa, mira agora seus canhões
contra juízes como Sérgio Moro, o procurador da
República Deltan Dallagnol e outros que ousaram
furar o cerco secular da impunidade, numa
inversão de valores que faria o próprio Rui
Barbosa envergonhar-se de ser brasileiro. Só
escapa um detalhe: a população está cansada, mas
não inerte. |
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