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Memórias, Memórias, Memórias: Saramago - por
Reynaldo Domingos Ferreira
Dez anos, neste último mês de julho, da morte do
controvertido escritor português, José Saramago
(1922 - 2010 ), Prêmio Nobel de Literatura
(1998). Conheci-o, em 1982, em companhia de dois
professores da Universidade de Brasília - UnB -,
no recém-inaugurado restaurante Fritz, criado
por Friedrich Klinger, na 404-Sul, especializado
em comida alemã, onde então, na cidade, se
buscava o novo, ou se fugia da banalidade, nos
dizeres de Marcel Proust, o qual anuncia agora,
lamentavelmente, o seu fechamento. Nada dura
para sempre!... Nada.
Eu lá me encontrava, naquela ocasião - um dia
ensolarado, bonito -, almoçando, com três
amigos, dois jornalistas, e um assistente de
diretoria bancária. Na época, eu era assessor de
Imprensa, pela primeira vez, do Banco Central do
Brasil, na gestão do então jovem, promissor
economista, Carlos Geraldo Langoni, doutorado,
pela Universidade de Chicago, hoje, com 77 anos,
ex-professor do atual ministro da Economia, que
quer taxar o livro em mais doze por cento. Um
absurdo!.... Que os parlamentares acordem para
isso!... E não deixem que isso aconteça. Livro é
pensamento. E, segundo Shakespeare, pensamento
não paga imposto. Não paga.
Pois, quando chegaram, os dois professores, por
serem amigos dos jornalistas, nossos
acompanhantes, logo se dirigiram a eles a fim de
lhes apresentar o escritor português, assim
ainda tratado, pois não era conhecido, o qual
viera a Brasília, segundo informaram, para o
lançamento, já anunciado, nos jornais, naquela
noite, de seu novo livro, e fazer uma palestra,
no Auditório " Dois Candangos " da UnB.
Mostrando-se um pouco reservado, e também
ansioso, Saramago nos cumprimentou secamente,
sem os sorrisos e sem a cordialidade de seus
acompanhantes, dizendo apenas o título do livro
" Memorial do Convento ", o qual, como nos
explicou, narrava a história da construção do
Convento de Mafra, no distrito de Lisboa, tido
como uma das Sete Maravilhas de Portugal. E,
dando por encerradas as rápidas apresentações,
os três se afastaram, céleres, a fim de ocuparem
uma mesa, já reservada, que ficava mais ao fundo
do amplo restaurante.
Apesar do convite, que os dois professores nos
fizeram, para comparecermos ao evento, eu, como
já tinha outro compromisso, não pude
estar lá, mas, na primeira oportunidade, que me
apareceu, de ir a uma livraria, como sempre
faço, interessei-me por comprar o livro "
Memorial do Convento ", o qual não só narra a
construção do Convento de Mafra - que eu
conheceria bem mais tarde -, como faz também a
crônica, paralela, da humilde e pobre família
Mau-Tempo, lavradores do Alentejo, desde épocas
muito remotas, até a Revolução dos Cravos, em
1974. Isso, porém, sem deixar de focalizar, da
mesma forma, a história de duas outras famílias,
a dos Sete Sóis e a das Sete Luas.
O livro me surpreendeu por sua linhagem, de
narrativa barroca, a combinar, certamente,
pensei, com o estilo arquitetônico do Convento
de Mafra, oferecendo-me, por isso, alguns
subsídios para concluir a minha peça," Dona
Bárbara " - por mim, montada, em 1983, no Teatro
Nacional -, cuja ação, envolvendo o casal
Alvarenga Peixoto-Barbara Heliodora, se passa,
em Vila Rica, no tempo da Conjuração Mineira,
onde também predominava a estética barroca, na
construção de suas belas igrejas, embora a
edificação dramática da obra esteja mais
relacionada com as propostas de Ibsen, como bem
observou o crítico teatral gaúcho Antônio
Hohlfeldt.
Como tudo cabe no barroco - que prevaleceu, na
Península Ibérica, nos séculos XVII - XVIII -,
em termos de esnobismo, pedantismo e arrogância,
esses atributos compõem, com certeza, a forma
original do " Memorial do Convento" e, por isso,
o seu uso, em demasia, no livro, se justifica,
enobrece-o, e não perturba o leitor. Mas repetir
esses atributos, em outras obras, de temáticas
diferentes, deixaria ficar evidente, a meu ver,
a intenção do autor de criar um distanciamento
muito grande, entre ele, e o leitor.
Deve ter sido o que também pensou Saramago, ao
escrever "Ensaio Sobre a Cegueira", que narra um
tema atualíssimo - nestes tempos de coronavírus
-, o de uma epidemia de cegueira, que assola uma
cidade. Um motorista, parado, no sinal,
descobre-se, subitamente, cego. Completamente. É
o primeiro caso de uma "treva branca", que se
espalha rápida e intensamente, mas sem as
teorias conspiratórias, de todos os matizes, que
se divulgam agora, pelas redes sociais.
Resguardados, em quarentena, como estamos, nos
tempos de hoje, diante da presente (e aparente)
vingança da natureza, os cegos se sentem
reduzidos, em sua essência humana, numa
verdadeira viagem às trevas. E se desesperam.
O que o autor propõe então é o sentido de
responsabilidade de quem tem olhos, os
privilegiados, quando os outros os perderam, os
marginalizados.
É aí que se identifica a pregação ideológica, ou
seja, a possível confirmação de que o livro pode
ter sido escrito por imposição partidária, como
afirmaria Jorge Amado, mestre no assunto, se
ainda fosse vivo. Para desenvolver esse tema -
bem próximo ao da peça " Os Cegos " do
dramaturgo belga, Michel de Ghelderode, como
quer me parecer -, Saramago não se acode, nem se
esconde, mais no barroco, como o fizera, de
forma magistral, em " Memorial do Convento", mas
numa linguagem hermética, cifrada, mais moderna,
como a de Kafka, a de Joyce e a de Beckett, sem
ter, entretanto, como se há de reconhecer, a
grandeza dos três.
De qualquer forma, porém, "Ensaio Sobre A
Cegueira", lançado, com muita promoção, ao final
do século passado, alcançou grande sucesso de
vendas, e mesmo de crítica (até o ensaísta
americano Harold Bloom se rendeu a algumas das
evidentes qualidades do escritor português, não
muito admirado, entretanto, em seu próprio
país), tendo sido o livro adaptado para o
cinema, pelo cineasta brasileiro, Fernando
Meirelles, que realizou, em 2008, possivelmente,
a meu ver, o pior filme de sua carreira - não vi
o último " Dois Papas ", financiado por um
amigo, de muita grana, do papa Francisco -,
jogando, ao mesmo tempo, a excelente atriz
Julianne Moore, numa fria, ou num fiasco, também
sem precedente, em sua extensa, e importante
filmografia.
Apesar disso, quando, em 1998 - dez anos antes
do lançamento do filme de Meirelles, citado
acima -, se anunciou pelos jornais, que Saramago
viria, novamente, a Brasília, para o lançamento
de um seu novo livro," Todos os Nomes", editado,
no ano anterior, na tentativa de poder refazer a
ideia, que então já formara sobre a obra do
escritor, tão festejado pela imprensa, de
orientação esquerdista, eu fui à Embaixada de
Portugal, onde se realizaria o evento, não mais,
na UnB.
A Embaixada estava às moscas, ou melhor, quando
lá cheguei, no auditório, onde já se encontrava
Saramago, de semblante carregado, havia uma meia
dúzia de gatos pingados, em torno dele,
recebendo o seu autógrafo. Adquiri o livro, à
entrada, já tendo, nele, o lembrete do meu nome,
para o autor fazer-me a dedicatória. Ao chegar a
ele, que logo pediu o meu exemplar, notei que,
se deteve, por alguma breve lembrança, pois, de
imediato, indagou-me: - O mesmo nome do poeta
angolano!... Você conhece a obra dele?" Ao que
eu respondi-lhe, prontamente: "- Sim. Tenho dois
livros do Reynaldo Ferreira." Saramago não disse
mais nada, e redigiu a dedicatória: "Ao Reynaldo
Ferreira, com simpatia, José Saramago".
Dias depois, ao iniciar a leitura de "Todos os
Nomes ", logo percebi, com certo ceticismo, que
dela não extrairia prazer algum, pois o tema
desinteressante - a história de um escriturário
de cartório de registro civil, que sem motivação
para realizar o seu monótono trabalho, coleciona
nomes de pessoas famosas, ao lado de gente comum
- força a compreensão de algo, mais ou menos
semelhante, às pregações, que Saramago já havia
feito, na obra anterior. Além disso, a narrativa
é feita numa linguagem cartorária, anacrônica,
antiquada, difícil de ser digerida. Poucas
vezes, abandono a leitura de um livro, pela
metade, mas foi isso o que, lamentavelmente,
aconteceu, com "Todos os Nomes", apesar de haver
nele a dedicatória simpática do autor, que,
naquele ano, mais tarde, em outubro, ganharia o
Prêmio Nobel de Literatura. A vida é assim.
Reynaldo Domingos Ferreira (19/08/2020) |
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