|
Repassando, RDF
Em 2006
comemora-se o centenário do poeta Ascânio
Lopes Quatorzevoltas (1906/1929), integrante
do grupo "Verde".
Os versos abaixo
são boa amostra da altitude desse poeta, tão
precocemente falecido.
Ascânio Lopes
Cataguazes
Para Carlos Drummond de
Andrade
Nem Belo Horizonte, colcha de retalhos
iguais,
cidade européia de ruas retas, árvores
certas,
casas simétricas,
crepúsculos bonitos, sempre bonitos;
Nem Juiz de Fora. Ruído. Rumor.
Apitos. Klaxons.
Cidade inglesa de céu enfumaçado, cheio de
chaminés negras;
Nem Ouro Preto, cidade morta,
Bruges sem Rodenbach,
onde estudantes passadistas continuam a
tradição das coisas que já esquecemos;
Nem Sabará, cidade relíquia,
onde não se pode tocar, para não desmanchar
o passado arrumadinho;
Nem Estrela do Sul, a sonhar com tesouros,
tesouros nos cascalhos extintos de seu rio
barrento;
Nem Uberaba, nem, nem, cidades arrivistas de
gente que não pretende ficar:
Nã-o ! Cataguazes... Há coisa mais bela e
serena oculta nos teus flancos.
Nas tuas ruas brinca a inconsciência das
cidades
que nunca foram, que não cuidam de ser.
Não sabes, não sei, ninguém compreenderá
jamais o que desejas, o que serás.
Não és do passado, não és do futuro; não
tens idade...
Só sei que és
a mais mineira cidade de Minas Gerais...
Nem geometria, nem estilo europeu, nem
invasão americana de bangalôs derniecri.
Tuas casas são largas casas mineiras feitas
na previsão de muitos hóspedes.
Não há em ti o terror das cidades plantadas
na mata virgem.
Nem o ramerrão dos bondes atrasados, cheios
de gente apressada.
Nem os dísticos de aqui esteve aqui
aconteceu.
Nem o tintim áspero dos padeiros.
Nem a buzina incômoda dos tintureiros.
Teus leiteiros ainda levam o leite em
burricos.
Os padeiros deixam o pão à janela (cidade
mineira).
Teu amanhecer é suave.
Que alegria de só ter gente conhecida faz
teu habitante voltar-se para cumprimentar
todos que passam. Delícia de não encontrar
estrangeiros de olhar agudo esperto mau, a
suspeitar
riquezas nas terras.
Alegria dos fordes brincando (são dois) na
praça.
(Depois vão dormir juntinhas numa só
garagem).
Jacaré!
João Arara!
João Gostoso! teus tipos populares.
A criançada atira-lhes pedras e eles se
voltam imprecando.
Rondas alegres de meninas nas ruas, às
tardes, sem perigo de veículos,
papagaios que se embaraçam nos fios de luz,
balões que sobem,
foguetes obrigatórios nas festas de chegada
do chefe político.
Jardins onde meninas ariscas passeiam meia
hora só antes do cinema.
Ar morno e sensual de voluptuosidade gostosa
que vibra
nas tuas tardes chuvosas, quando as goteiras
pingam nos passantes
e batem isócronas nos passeios furados.
Há em ti a delícia da vida que passa porque
vale a pena passar,
que passa sem dar por isso, sem supor que se
vai transformando.
Em ti se dorme tranqüilo sem
guardas-noturnos.
Mas com o cricri dos grilos,
o ranram dos sapos,
o sono é tranqüilo como o de uma criança de
colo.
Vale a pena viver em ti.
Nem inquietude,
nem peso inútil de recordações
Mas a confiança que nasce das coisas que não
mudam bruscas,
nem ficam eternas.
|
|