Repassando: Memórias, memórias,
memórias!...
O fato.
Aylê 11.12.2020
Clarice, não a minha
antiga namorada
de
Jequitibá,
a Lispector:
aquela que tinha medo do fato.
Rubem Braga sofreu
com sua desconfiança.
Vivera,
entretanto, o fato,
na sua cruel
pluralidade,
na infância e na
adolescência,
na vida, nas
fatalidades
de imigrante easy
rider,
que não
configurava um lugar,
uma raiz, que
tanto se esforçou
a procurar.
Queria ser
brasileira,
nordestina,
sertaneja.
mas era uma globe
trotter,
uma viajante da
imaginação.
Vivia fora, em
mundos reais diversos,
Sem tempo,
portanto, para
configurar uma
realidade própria,
uma Nação, uma
nacionalidade.
A concretude dos
seus pensamentos ,
não estava lá onde
se colocava.
Vinda de fora para
dentro,
reconhecida, por
adoção,
internamente
configurada
por amores
fortuitos,
Em si , quando não
estava fora da realidade,
tendia a surfar,
não pelo Brasil,
dentro do Brasil também,
com Raquel de
Queiroz
mas dentro de si
construindo uma
realidade própria,
desnaturalizada,
deprovincializada,
cidadã que era,
do mundo, de si
mesma,
do
fato desenraizada.
O CONHECIMENTO
Aproveitando a deixa do amigo
Aylê-Salassié Quintão,
Revelo aqui que conheci a escritora
ucraniana, criada, em Pernambuco e
naturalizada brasileira,
Clarice Lispector (1920-1977), em
1961, quando ela foi a São Paulo
Para receber o último Prêmio Carmen
Dolores Barbosa (1954-1961),
patrocinado por uma
Socialite paulista, desejosa de
projetar seu nome, nos meios
literários do país, que,
Na época, gozavam de prestígio, nos
jornais, de nível mais apurado do
que esses, que nos são
Oferecidos, nos lamentáveis tempos
brasileiros de hoje.
Então, eu trabalhava, no período
matutino, redigindo o noticiário da Rádio
Gazeta,
E, no
vespertino, fazendo reportagens para o
jornal A Gazeta, ambos da
Fundação
Cásper Líbero.
Tanto numa
redação, quanto, na outra, eu mantinha
contato, quase diário,
Com figuras
expressivas da intelectualidade paulistana.
Quem tinha a
sua mesa de trabalho, de programador
cultural,
Ao lado da
minha - localizada junto ao aparelho de
telex -,
Na redação da
Rádio Gazeta,
Era o pintor
Oswald de Andrade Filho ( 1914 - 1972 ),
também conhecido
Por Boné de
Andrade, que, todas as manhãs, recebia, para
longas conversas, telefonemas da pintora
Tarsila do
Amaral ( 1886 - 1973 ), uma das várias
mulheres de seu pai, Oswald de Andrade (
1890-1954 )
Que liderou,
ao lado de Mário de Andrade ( 1893 - 1945 )
,
A realização
da Semana da Arte Moderna ( 1922), da qual
ela também participou.
Mais ao fundo
da sala, sentava-se, junto a um quadro de
avisos, um jovem claro, mais ou menos
Da minha
idade, Paulo Riccioppo ( 1938 ), responsável
por alguns dos programas de maior audiência
da Rádio.
Era ele quem
trazia para a nossa movimentada redação - em
toda minha vida profissional, eu não
conheceria
Nenhuma outra
igual - um punhado de jovens, nossos
contemporâneos, todos graduados pela
Faculdade de
Comunicação Social Cásper Líbero, desejosos
de realizarem projetos em diversas
Áreas
culturais.
Destacava-se,
entre eles, Maurício Rittner (1939-2015), um
jovem, também de origem judaica, como
Clarice, e claro,
como
Riccioppo, de olhos esverdeados, que usava
óculos de grossas lentes, por causa da
miopia.
O sonho de
Maurício era o de se tornar um grande
cineasta,
Apesar da
pressão, em contrário, do pai e do irmão,
que tocavam uma empresa de grande porte, na
área da construção civil.
Mauricio,
entretanto, já figurara, na ficha técnica de
um filme, um clássico, "Noite Vazia" ( 1964
), como assistente do diretor
Walter Hugo
Khoury ( 1929-2003).
Mas ele queria
mais!... E chegou a realizar "As Delícias da
Vida", "Uma Mulher Para Sábado" e
" A Arte de
Amar Bem", além de dois ou três livros
publicados sobre cinema.
O seu projeto,
na ocasião, era o de realizar um
curta-metragem,
De 45 minutos
- nada mais que isso -, baseado no livro "
Perto do Coração Selvagem", de Clarice
Lispector,
Por cuja obra
tinha, confessadamente, grande admiração.
E não só ele,
mas também Paulo Riccioppo, e a sua amiga,
a escritora,
Maria Geralda,
tia, porém, mais nova de Tarcísio Meira (
1935 ) , que acabara de estrear, no teatro,
Na peça " Doce
Pássaro da Juventude", de Tennessee Williams
( 1911-1983 ), sob a direção de Sérgio
Cardoso ( 1925-1972 ).
Maria Geralda
era uma morena, muito bonita, de olhos
rasgados, como os de uma indiana,
Que, seguindo
o receituário de Clarice, de linha
intimista, com ruptura do enredo factual,
E exacerbação
de subjetivismo,
Já redigira
alguns contos, quase todos publicados,
No Suplemento
Literário de " O Estado de S. Paulo ".
Escapávamos
dessa coletiva admiração da obra da
escritora de " A Maçã no Escuro ", eu, que
ainda não lera
Nenhum livro
dela, mas apenas suas crônicas, no " Jornal
do Brasil", e, possivelmente, Américo
Pellegrini Filho (1937),
Cujo foco eram
as suas infindáveis pesquisas folclóricas,
Realizadas no
Vale do Paraíba, principalmente, em São Luís
do Paraitinga.
Hoje é
professor, colaborador em Pós-graduação, na
Escola de Comunicação e Artes da USP.
Ao saber que
Clarice estaria em São Paulo, na noite da
premiação, Maurício, que já se adiantara,
Na escritura
do roteiro de seu projetado filme, tratou de
se comunicar com ela, por telefone,
Usando, com a
devida permissão, o aparelho do diretor da
Rádio,
Seu
ex-professor, Helcio de Carvalho Ramos (
1929 - 2003 ).
Concluída a
conversa com a sua deusa literária, Maurício
saiu, do gabinete do diretor, lívido, pálido
de emoção,
A tal ponto
que chegou, em nossa sala, com a aparência
de que iria desmaiar.
Mas, foi
atendido, a tempo, por Maria Geralda, que o
conduziu a uma poltrona, enquanto
Paulo
Riccioppo lhe servia um copo de água.
Foi quando ele
nos revelou que Clarice aceitara o convite,
Por ele
formulado, para participar de um coquetel,
em sua homenagem,
Para
acontecer, na noite da premiação, após a
solenidade.
O certo é que,
ao aceitar o convite, Clarice fizera,
segundo Maurício, várias exigências,
Por estar
passando, conforme disse, naquela ocasião,
uma fase difícil, de depressão, causada
Por sua então
recente separação do embaixador Maury Gurgel
Valente ( 1921-1994 ), um diplomata de
escol,
Um intelectual
de quilate, leitor de Cervantes e de
Shakespeare, e amicíssimo de Érico Veríssimo
( 1905 - 1975 ),
Com quem
viveu, de 1953 a 1959, e teve dois filhos,
Pedro ( 1954 ) e Paulo ( 1956 ) Gurgel
Valente,
Os quais, ao
que consta, passaram a viver com o pai.
Ao que ela
teria acrescentado,segundo nos disse
Maurício, a oportunidade,
Que ele lhe
oferecia de se reunir com jovens leitores de
suas obras
Ser-lhe-ia
benéfica, pois evitaria que ficasse fechada,
sozinha, por muito tempo,
Em um quarto
de hotel, já que
Deveria
regressar ao Rio, no primeiro voo, do dia
seguinte, da ponte aérea.
Pediu, porém,
que o número de participantes fosse o mais
restrito possível,
E que as
conversas fossem voltadas apenas para
questões literárias.
Formou-se
então, em nosso meio, uma grande expectativa
em torno do acontecimento.
O coquetel
seria realizado, na garçoniére, que Maurício
mantinha, com dois associados,
Jamais
revelados, num belo edifício, situado, na
esquina da Avenida São Luís, com a Praça da
República.
O apartamento,
de um quarto, tinha, além da cozinha, bem
equipada, uma sala ampla, muito bem
decorada, com
pequena
varanda, dando para a Avenida São Luís.
Quando lá
chegamos - dois redatores de A Gazeta, e eu
-, Maria Geralda, Paulo Riccioppo e duas
amigas davam
os retoques
finais na mesa, que exibia, além de um vaso
de flores, ao centro, uma variedade de
salgados, de doces
e de bebidas.
Mauricio, conforme ela nos disse, já tinha
ido, com um amigo, apanhar a homenageada
Clarice.
Outros
convidados apareceram. Ao todo, imagino,
estavam lá, naquela noite, mais de vinte
pessoas, que conversavam
animadamente,
mas não dando, naturalmente, ao ambiente
nenhuma semelhança com o coquetel oferecido
por Holly Golightly
( Audrey
Hepburn ), em seu exíguo apartamento, no
filme " Bonequinha de Luxo ", de Blake
Edwards ( 1922 - 2010 ), baseado
em um conto de
Truman Capote ( 1924 - 1984 ), grande
sucesso nos cinemas, naquele ano de 1961.
Quase todos os presentes,
tinham
exemplares de " A Maçã no Escuro", obra que
dera motivação ao prêmio a Clarice, para que
ela os autografasse.
De repente,
anunciada por Mauricio, a estrela
apareceu!...
Era a hora
dela, que ingressou na sala, um tanto
constrangida - ou se fazendo como tal -,
pedindo a todos que moderassem
nas saudações.
Era realmente uma mulher muito bonita, de
porte elegante, com ligeiro sotaque
pernambucano, o que, sem dúvida,
fazia destacar
ainda mais a sua beleza. Lembrei-me de
Pirandello, pois ela me pareceu ser mais uma
personagem - talvez como
Holly
Golightly, inclusive no seu desejo de dar a
parecer ser uma brasileira autêntica - do
que propriamente uma escritora, em busca
de um
autor!...
E mais: a
personagem, que se nos apresentava, na
ocasião, não portava a cabeleira postiça,
que as mulheres devotas judias usam,
em qualquer
evento social, mas ostentava, sem dúvida,
uma máscara, um disfarce - também a lembrar
Holly - como elemento de
proteção ou de
defesa do que lhe passava, no interior!... E
fumava desbragadamente. Esse vício, por
sinal, lhe causaria, mais tarde,
os dissabores
de ter de ser socorrida pelos bombeiros
cariocas ante um princípio de incêndio, em
seu apartamento, causado por uma
ponta de
cigarro aceso, que fez alastrar o fogo pelas
cortinas, segundo se noticiou, na época.
Logo, Clarice
sentou-se, a um canto, onde havia um pequeno
console, e, servindo-se dele, começou a
autografar os exemplares de
seu livro, que
lhe eram apresentados.
Então, eu já
havia lido o exemplar, que me fora
emprestado por Maria Geralda.
E já firmara
convicção de que a linha intimista, tal como
imposta por Clarice, seguida por sua irmã
Elisa Lispector ( 1911 - 1989 ), e
por minha
amiga, Maria Geralda, não me agradava. Não
gosto - nunca eu gostei - de autores
trancados, em si mesmos, em suas
elucubrações,
que são incapazes de fixar a paisagem, que
os cerca.
Sou, como
Aníbal Machado ( 1894 - 1964 ), autor de "A
Morte da Porta-Estandarte ", que dizia: "
Mesmo caminhando para o patíbulo,
o homem deve
olhar a paisagem!..." E esse não é o caso
de Clarice e de seus seguidores, que, se
chegam a olhar para fora de si
mesmos, o
fazem de forma muito artificiosa, sem
autenticidade alguma.
E, penso que,
ao meu critério, " A Maçã no Escuro " está
longe de ser comparado aos demais livros,
premiados pela Sra. Carmen
Dolores
Barbosa: " Os Cangaceiros ", de José Lins do
Rego ( 1901-1957 ), autor que muito prezo. (
" Fogo Morto", também de sua
autoria, para
mim, é um dos romances mais primorosos da
literatura brasileira ) ; " A Menina Morta
", um clássico, sem dúvida, do
grande
escritor mineiro, Cornélio Penna ( 1896 -
1959 ), infelizmente, esquecido por todos
nós; " A Rua do Sol" , uma preciosidade,
de Origenes
Lessa ( 1903 - 1966 ); " Gabriela, Cravo e
Canela" , a obra-prima de Jorge Amado ( 1912
- 2001 ) depois que se libertou
do jugo
comunista; " A Montanha Russa " também um
belo livro , do poeta paulista Cassiano
Ricardo ( 1895 - 1967 ) e o monumental
" Grande
Sertão: Veredas", de Guimarães Rosa ( 1908 -
1967 ).
Terminada a
concessão de autógrafos por Clarice,
iniciou-se o coquetel, animando ainda mais
as conversas, que, com Clarice, foram
monopolizadas,
como se esperava, por Maurício, Paulo
Riccioppo e Maria Geralda. Como eu me
encontrava, mais ou menos, por perto,
cercado por
outros amigos, pude perceber que Maurício se
mostrava exultante ante as aprovações
monossilábicas de Clarice sobre tudo
o que ele lhe
expunha acerca da adaptação, que vinha
fazendo, de seu romance, para a linguagem
cinematográfica. Como o tempo tudo
apaga, tudo
destrói, não sei dizer, se ele chegou a
concluir o seu projeto de realizar o filme
baseado na obra de Clarice. Vindo para
Brasília,
logo depois,
rarearam-se - até acabarem - os meus
contatos com os amigos das redações da Rádio
Gazeta e do jornal A Gazeta.
Com o avanço
do horário, daquela noite, alguém sugeriu a
Clarice que passássemos todos, os que ainda
estávamos presentes, a madrugada
numa boate,
que havia ali, por perto, na Rua Major
Sertório, convite que ela prontamente
aceitou, para ir, de lá, ao amanhecer,
direto para o
aeroporto.
Acompanhei-os até a porta da boate, mas não
entrei, pois teria de estar, na redação, as
6,30 horas, a fim de redigir o noticiário
da
Joalheria
Bim-Bam, no início das transmissões da Rádio
Gazeta, às 7,00 horas, em ponto.
E foi assim
que conheci Clarice Lispector, que neste dia
10 de dezembro, de 2020, completaria cem
anos!...
Reynaldo
Domingos Ferreira, jornalista e escritor.
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