A firma
Como se articulam
advogados criminalistas e filhos de
ministros de tribunais superiores alvos
de investigações para blindar-se na
Justiça, implodir a Lava Jato e
manter-se longe do alcance da lei
Time
auricularmente respeitável da
advocacia nacional está
interessado na aprovação do
projeto de Abi-Ackel
24.12.20
No apagar das luzes do
ano legislativo, e com o Brasil sofrendo
as agruras da nova onda do coronavírus,
responsável por ceifar 189 mil vidas no
país até o momento, as nobres
excelências entenderam ser urgente a
aprovação de um projeto de lei cujo
objetivo principal é blindar de
investigações criminais os já
constitucionalmente blindados
escritórios de advocacia. Se dentro do
Congresso os apoiadores da medida são
aqueles mesmos que, encalacrados com a
Justiça, se valem do ofício de legislar
para impor travas ao combate à
corrupção, do lado de fora do
Legislativo os interessados na aprovação
do projeto vão desde renomados
escritórios de advocacia – muitos deles
enredados em escândalos de desvios de
dinheiro público praticados em conluio
com seus próprios clientes – a
magistrados, entre os quais ministros de
cortes superiores cujos filhos
causídicos foram flagrados em supostas
transações nada republicanas.
Compõe o lobby a favor da
proposta em tramitação no Congresso um
time auricularmente respeitável da
advocacia nacional. Entre eles, Felipe
Santa Cruz, presidente da OAB; Flávio
Zveiter, integrante de um dos clãs mais
poderosos do Judiciário, Ana Tereza
Basílio, esposa do desembargador André
Fontes, do Tribunal Regional Federal da
3ª Região, Eduardo Martins, primogênito
do atual presidente do Superior Tribunal
de Justiça, além dos filhos de Cesar
Asfor Rocha, ex-presidente do STJ, e do
ministro do TCU Aroldo Cedraz – Caio
Rocha e Tiago Cedraz, respectivamente.
Nos bastidores, o projeto conta com o
apoio dos defensores do ex-presidente
Luiz Inácio Lula da Silva, os advogados
Cristiano Zanin e Roberto Teixeira, e do
ex-advogado da família Bolsonaro, o
notório Frederick Wassef.
O peso e a capilaridade
do grupo impressionam e ajudam a
explicar por que o regime de urgência
para a votação do projeto foi aprovado
no afogadilho no Congresso, com
pouquíssima ou quase nenhuma
contestação. Os interesses se entrelaçam
aos de outros advogados criminalistas
cujos clientes também estão enrascados
na Lava Jato como Antônio Carlos de
Almeida Castro, o Kakay, conhecido por
não medir palavras nos ataques ao
ex-juiz Sergio Moro, e Alberto Toron, um
dos criminalistas mais requisitados por
investigados da Lava Jato e também um
duro crítico da operação.
Tanto Kakay como Toron
fazem parte do Prerrogativas, surgido há
cinco anos, pouco depois das primeiras
fases da Operação Lava Jato,
inicialmente como um grupo de WhatsApp.
O objetivo prioritário era defender as
prerrogativas dos profissionais,
sobretudo os que atuavam no caso, mas
logo a associação de advogados virou uma
trincheira contra a força-tarefa em si.
Amigo do peito do ex-ministro José
Dirceu, que lhe deu a maior força no
início dos anos 2000, Kakay já chegou a
ter 18 clientes envolvidos na Lava Jato,
entre os quais Edison Lobão, Roseana
Sarney, Romero Jucá e Ciro Nogueira, um
dos líderes do Centrão, tal como o
deputado Arthur Lira, candidato à
presidência da Câmara e entusiasta do
projeto.
Sergio
Dutti/UOL/FolhapressKakay,
íntimo de ministros do
Supremo, é um notório
crítico da Lava Jato
Kakay já transitou de bermuda e camisa
de mangas curtas pelos corredores do
Supremo Tribunal Federal, a fim de
afetar intimidade com ministros da
corte. O advogado, por óbvio, não
costuma dizer quanto cobra para defender
clientes enrolados. Há algumas pistas.
Documentos da auditoria interna da
Brasil Telecom, no longínquo ano de
2005, sobre a passagem do banqueiro
Daniel Dantas no controle da companhia
telefônica revelaram pagamentos de pelo
menos 8,3 milhões de reais ao advogado.
Já Toron, que nunca apareceu envolvido
em investigações, defendeu acusados como
Fernando Bittar, sócio de Lulinha. Foi
de Toron a tese, reconhecida pelo
Supremo, de que é direito dos delatados
apresentarem as alegações finais depois
dos réus que firmaram acordos de
colaboração. O entendimento, aplicado no
caso do ex-presidente da Petrobras
Aldemir Bendine, cliente de Toron, é
considerado um dos maiores golpes contra
a Lava Jato. Graças a seus feitos, o
advogado criminalista ganhou entre seus
pares um apelido que ele abomina: “Rei
dos Habeas Corpus”. Há oito anos, foi
dele o argumento que ajudou a aplicar a
maior derrota até então a uma operação
de combate à corrupção, a Castelo de
Areia, antecessora da Lava Jato,
deflagrada em 2009 para investigar
pagamento de propina a políticos por
executivos da empreiteira Camargo
Corrêa. Com todo esse currículo, no meio
advocatício, há quem diga que as causas
em que Toron atua jamais dão menos do
que milhão.
O projeto hoje em regime
de urgência na Câmara, de autoria do
prestativo deputado Paulo Abi-Ackel, do
PSDB, e que toda essa turma de advogados
e filhos
de magistrados quer
ver rapidamente aprovado, prevê, entre
outras coisas, a inviolabilidade
dos escritórios de advocacia. Ao
restringir a realização de buscas e
apreensões nesses locais, o texto
favorece advogados investigados em casos
de corrupção e envolvidos com o
narcotráfico. “É vedada a quebra da
inviolabilidade do escritório do
advogado com fundamento meramente em
indício, depoimento ou colaboração
premiada, sem a presença de provas
periciadas e validadas pelo Poder
Judiciário, sob pena de nulidade”, diz o
projeto de lei. Intramuros, no
Congresso, a justificativa para a
urgência na aprovação da proposta é a de
sempre – nunca é demais aproveitar uma
oportunidade para fustigar a Lava Jato e
limitar a atuação dos investigadores que
um dia podem bater à porta do gabinete
ou da casa de um amigo. Publicamente, os
parlamentares adotam a velha cantilena
de que não se pode violar o local de
trabalho do advogado, como se o que
estivesse em questão fosse a atuação dos
causídicos que agem em conformidade com
a lei.
Luís
Macedo/Agência CâmaraHelio
Telho diz que projeto
vai beneficiar o
“advogado bandido”
Na verdade, o que se deseja é uma
espécie de blindagem irrestrita para
quem delinquiu ou quer delinquir – o que
o procurador Hélio Telho chama de
“advogado bandido”. Hoje, os bacharéis
já são contemplados com uma salvaguarda
constitucional. A Constituição
estabelece, por exemplo, que o sigilo
entre advogado e cliente é sagrado e que
advogado não pode ser submetido a
determinados constrangimentos. Mas não
há na Constituição carta branca para o
cometimento de crimes. O advogado que
ajuda o cliente a cometer crimes precisa
ser alcançado pela lei. Não se pode
quebrar sigilo de cliente, mas o mesmo
não deve valer se há indícios de que o
advogado está cometendo crimes em
parceria com o cliente. A defesa do
estado democrático de direito não pode
virar salvo conduto para que
malandragens sejam cometidas. É o que
diz a nota emitida pela Associação dos
Delegados da Polícia Federal durante a
semana. “O projeto de lei citado cria
uma perigosa imunidade praticamente
absoluta para a atividade da advocacia,
que se mal utilizada poderá se converter
em salvaguarda para cometimento de
ilícitos de toda natureza e em uma
espécie de bunker para a criminalidade
organizada, em detrimento dos interesses
da sociedade”, diz a ADPF. É fundamental
destacar que ninguém está acima das
leis”, acrescentam os delegados.
Para compreender melhor
os interesses dos que exercem forte
pressão pela aprovação do projeto do
impoluto Abi-Ackel na Câmara é preciso
rememorar ao menos dois episódios. O
primeiro em 9 de setembro deste ano,
quando a Polícia Federal saiu às ruas
para cumprir 51 mandados de busca e
apreensão expedidos pelo juiz Marcelo
Bretas contra escritórios de advocacia
suspeitos de integrar um esquema que
desviou 151 milhões de reais do Sistema
S, por meio da Fecomércio do Rio de
Janeiro, comandada por Orlando Diniz até
2018. A delação de Diniz e o material
reunido em dois anos de investigação
resultou na ação considerada por
investigadores como a maior investida da
história do país contra a advocacia e o
Judiciário.
Suamy
Beydoun/Agif/FolhapressFelipe
Santa Cruz, da OAB,
defende inviolabilidade
de escritórios de
advocacia
Embora não houvesse nenhum alvo com foro
privilegiado, ao mirar os advogados,
a
Operação E$quema S levou pela primeira
vez a Lava Jato à porta das cortes
superiores,
como o STJ – e ainda avançou sobre
possíveis irregularidades no Tribunal de
Contas da União, o TCU. Uma breve lista
dos alvos mostra como a ação do
Ministério Público Federal do Rio de
Janeiro conseguiu reunir contra si
inimigos poderosos. Um dos principais
nomes a receber a visita da PF foi nada
menos que Eduardo Martins, advogado e
filho de Humberto Martins, atual
presidente do Superior Tribunal de
Justiça, o STJ. Além de alvo de busca,
Martins viu o ex-sócio Diogo Amorim Gaia
Duarte, apontado como seu operador por
Diniz, ser abordado pelos agentes
federais – a surpresa foi tão grande que
um chip de celular foi parar no vaso
sanitário do advogado. Do mesmo STJ, o
sobrinho do ministro Luis Felipe
Salomão, Paulo Salomão, também teve seus
sigilos quebrados – assim como o filho
de Cesar Asfor Rocha, ex-presidente do
STJ, Caio Rocha, que também foi apanhado
pela operação. Filho do ministro do TCU
Aroldo Cedraz, o advogado Tiago Cedraz é
outro que apareceu entre os
investigados. Os demais alvos foram os
mesmos que hoje fazem lobby pelo projeto
que blinda os escritórios de advocacia:
Cristiano Zanin e Roberto Teixeira,
Frederick Wassef, Flávio Zveiter e Ana
Tereza Basílio.
As revelações de Orlando
Diniz que deram origem à E$quema S
reforçaram os relatos do ex-governador
Sérgio Cabral que sete meses antes, em 6
de fevereiro, tivera o acordo de
colaboração premiada homologado pelo
ministro Edson Fachin, do STF. Como
revelou Crusoé,
na parte sobre sua relação com Diniz, o
ex-governador é ainda mais incisivo ao
afirmar que os
pagamentos para Eduardo Martins tinham,
na verdade, o pai Humberto Ministro como
destinatário.
Ainda segundo Cabral, outro colega de
STJ, o ministro Napoleão Nunes Maia,
também receberia parte dos valores em
troca do apoio às causas da Fecomércio
na corte. O TCU apareceu nos anexos de
Cabral com ao menos seis ministros
citados. Três deles, disse o
ex-governador, recebiam um “mensalinho”
por meio do escritório de Marcelo Nobre,
conhecido advogado de Brasília.
As revelações de Cabral
foram arquivadas pelo ministro Dias
Toffoli durante o recesso do Judiciário,
mesmo após as ordens de abertura de
inquéritos expedidas pelo seu colega
Edson Fachin. As investigações com base
no acordo de Orlando Diniz não tiveram
destino diferente até o momento. A
E$quema S e todos os inquéritos foram
paralisados por decisão do ministro
Gilmar Mendes, do STF. Um mês antes da
decisão, a Lava Jato do Rio havia
solicitado a suspeição do ministro pelo
fato do cunhado de Gilmar, o empresário
Francisco Feitosa, aparecer em
transações suspeitas com Caio Rocha,
filho do ex-presidente do STJ, Cesar
Asfor Rocha, denunciado por ter recebido
cerca de 2,6 milhões de reais da
Fecomércio. No caso de Diniz, a decisão
de Gilmar Mendes ainda pode ser
derrubada. A expectativa entre
investigadores, entretanto, não é das
melhores.
Com a indefinição sobre o
futuro dos inquéritos, a necessidade de
definir novos critérios para
investigações que miram advogados
tornou-se ainda mais premente no
Congresso. A sessão que aprovou o
requerimento de urgência assinado por
líderes da oposição e do Centrão tinha
364 deputados conectados pelo aplicativo
de sessões remotas da Câmara. Ao menos,
era o que indicava o painel eletrônico
da Casa, quando, na verdade, poucos
líderes estavam de fato presentes em
plenário. Optou-se, então, pela votação
simbólica do requerimento de urgência,
apenas com a orientação dos partidos,
quase que unânimes no sentido de
apressar o debate do projeto – os
partidos Novo e PSOL foram os únicos
contrários à urgência. O governo Jair
Bolsonaro, cujo advogado é um dos
investigados, orientou de forma
favorável, assim como os demais partidos
do Centrão que compõem a base
governista. PSD e DEM chegaram a esboçar
alguma discordância com o texto, mas
deram sinal verde para que a matéria
fosse votada a toque de caixa, com aval
de Rodrigo Maia. Em quatro minutos a
urgência foi aprovada. Expoente do
PCdoB, Alice Portugal – correligionária
da autora do requerimento, Perpétua
Almeida, líder do partido – nem sequer
gastou saliva para defender o projeto.
“Encaminhamos sim, Sr. Presidente. Falei
de maneira sintética hoje”, riu.
Nos dias que antecederam
a votação, o reto e vertical Paulo
Abi-Ackel, de uma cepa imutável de
advogados mineiros, amigão de Aécio
Neves, outro investigado e cliente de
Alberto Toron, conversou com
parlamentares para convencê-los da
importância da matéria. Não precisou
obviamente de nenhum esforço para ganhar
a simpatia de Arthur Lira, o líder do
Centrão apoiado por Bolsonaro que vem
prometendo pautas anti-Lava Jato em sua
campanha para ser o sucessor de Rodrigo
Maia. Do Centrão veio também o apoio de
Lafayette de Andrada, ex-tucano e hoje
no Republicanos – partido que anunciou
poucos dias depois que iria marchar nas
fileiras de Lira na eleição da Câmara.
Andrada proferiu parecer favorável ao
projeto do conterrâneo, negando qualquer
tipo de “blindagem odiosa” aos
advogados.
Ex-ministra do Superior
Tribunal de Justiça e ex-corregedora
nacional de Justiça, Eliana Calmon,
conhecida crítica do que chama de
“bandidos de toga”, afirmou a Crusoé que,
com a aprovação do projeto, os
escritórios podem virar um “verdadeiro
bunker”. “A existência de material
suspeito é apenas prova indiciária, e,
sem ela, os escritórios ficam
praticamente invioláveis”, lamenta. O
procurador da República Hélio Telho, que
atuou em desdobramentos da Lava Jato na
Valec, a estatal de trens do governo
federal, avalia que o projeto “protege o
bandido advogado”. “Vai favorecer
organizações criminosas como o PCC, que
se utilizam de advogados para cometer
crimes, e facilitar o uso de advogados
para lavar dinheiro”, disse.
O projeto de lei
patrocinado pelo lobby de advogados e
políticos encrencados com a Justiça não
é uma novidade. Assim como agora, em
2008, quando grandes operações da
Polícia Federal chegaram muito perto dos
poderosos brasileiros, a OAB se
movimentou para aprovar uma lei com a
previsão de inviolabilidade dos
escritórios de advocacia. Os motivos,
embora os atores fossem diferentes, era
o mesmo: o temor pelo avanço de
investigações contra seus afiliados.
Naquele ano, a iniciativa naufragou, mas
deixou a lição sobre qual o melhor
caminho para livrar advogados enrolados
das garras da Justiça. Como era de se
esperar, tão logo a urgência na votação
do projeto foi declarada, o presidente
da OAB, Felipe Santa Cruz, divulgou uma
nota de apoio onde afirma que “a
inviolabilidade do escritório do
advogado é uma garantia da sociedade”. O
que Santa Cruz não disse é que um de
seus sócios foi acusado por Orlando
Diniz de ter recebido 120 mil reais – o
dinheiro, segundo o delator, seria
destinado a irrigar a campanha dele
próprio ao comando da OAB.