A barbearia fora fechada, 
										por decreto, pelo 
										governador. Cabisbaixos, os dois 
										profissionais autônomos estavam 
										sentados no passeio, do lado de 
										fora, rodeados por alguns clientes. O 
										fiscal passara por ali e cerrara as 
										portas dos seus “ganha pão”. Cada um era 
										pai de três crianças menores.  Não 
										podiam parar de trabalhar um dia sequer. 
										 “Só dia 14!”, advertiu  com ar superior 
										o preposto do Estado.
										
										O governador assinara um 
										ato suspendendo as 
										atividades econômicas, impondo, com 
										ameaça de multa, o confinamento dos 
										cidadãos por dez dias. Expunha-se a 
										outra face do drama da pandemia do covid. 
										No dia seguinte, diante da 
										repercussão negativa, o governador 
										encenou sensibilidade, editando 
										novos decretos, agora, 
										contraditoriamente, permitindo a 
										reabertura das portas das academias, dos 
										bares e restaurantes.
										
										 Passado um dia, viria um 
										terceiro ato, suspendendo 
										 novas atividades produtivas. Permitia, 
										entretanto,  reabrir coisas como  bancas 
										de jornal. Os ginásios estavam fechados 
										para o vôlei; mas, os estádios abertos, 
										com ressalvas,  para o futebol.   
										
										Uma descoordenação total. 
										Um vai e vem de ordens, uma desordem.  
										Os atos oficiais pareciam surfar  pelas 
										madrugadas num copo de whisky.
										
										Atemorizada pelo aumento 
										do número de mortos, a 
										população assistia boquiaberta àquele 
										solitário jogo de damas do governador. 
										
										Seria o lockdown uma 
										necessidade , de fato, diante das 
										ameaças pandêmicas, ou uma mera 
										expressão do seu auto empoderamento? 
										
										Uma brincadeira  de mau 
										gosto ou uma corajosa tomada de decisão? 
										Impressionava perceber como o governante 
										podia tudo – era o tal poder que emanava 
										do povo - , estando  bêbado ou não.  O 
										Presidente da República não fazia por 
										menos: atropelava e desatropelava; 
										agredia e contemporizava. Em um 
										momento, anunciava a compra de uma 
										vacina contra a pandemia, gerando 
										esperanças; em seguida, o cancelamento. 
										Já era outra a que interessava. 
										Ministros e secretários de saúde se 
										sucediam. 
										
										Todos eram 
										a favor do confinamento hoje. 
										Instantes depois já se sentiam 
										incomodados.
										
										 Enfim, a incoerência 
										tornava-se uma peça chave no xadrez que 
										conduzia o poder de vida ou de morte do 
										governante sobre os cidadãos. 
										Espalhava-se pelos governos e 
										governadores, alguns ameaçando ainda 
										pular a cerca das próprias 
										jurisdições regionais, com acusações aos 
										pares: uma guerra santa. O barbeiro 
										estava lá estirado sem saber como ia 
										levar comida para casa no final do dia. 
										O fiscal desaparecera: safara-se da 
										responsabilidade, alegando que cumprira 
										seu  dever.
										
										A partir da instabilidade 
										emocional dos governantes a pandemia 
										ganhava a volubilidade das ruas. Os 
										índices de mortalidade vulgarizavam-se, 
										e começavam a configurar uma anomia 
										geral. Passou a servir de mote para 
										exercícios nas artes, e até de motivos 
										de chistes entre amigos. Tinha gente 
										vendendo atestado de óbito. Ninguém 
										parecia ter mais qualquer compromisso 
										com a vida . Perdia-se o pudor diante da 
										morte.
										
										O Presidente (e a 
										família) iam-se tornando 
										vagarosamente também incômodos. Ao invés 
										de acalmar a população, ele gerava 
										sistematicamente insegurança. Mentia, 
										dizendo ou desdizendo . E não iria 
										mudar. Ele era assim mesmo, 
										diferente dos 220 milhões de 
										brasileiros.
										
										Quando cobrados pelos 
										cidadãos, os governadores transferiam 
										irresponsavelmente o combate à pandemia 
										para a União, de quem  esperavam sempre 
										ajuda financeira. “Se é para transformar 
										o Brasil em uma Venezuela, eu saio”. Mas 
										em assuntos de governo, não se perde por 
										esperar. Em meio a esse cipoal de 
										medidas e desmedidas, o próprio ministro 
										da Fazenda anunciaria , logo depois, 
										mais R$ 44 bilhões para a saúde, para 
										ser dividido, em convescote,  com os 
										governadores; e uma retomada da ajuda 
										emergencial, em dinheiro vivo, para 40 
										milhões de pessoas. Até tu, Guedes!
										
										Sem ninguém saber 
										exatamente como gerir a pandemia, o coronavírus, 
										como um tsunami,  atravessa o espaço da 
										história e sacraliza no campo a 
										religiosidade da política. Os 
										espertos usam o flagelo para encobrir os 
										mal feitos. Mas ele serve também para 
										empoderar vaidades e ressuscitar 
										 deuses mortos, bem como velhas práticas 
										- jurídicas inclusive -  e façanhas, 
										criando e recriando monstrinhos. É a 
										 herança dessa bela democracia, 
										temperada com ficções 
										ideológicas pequeno burguesas e 
										vulgaridades populistas . A 
										pandemia estimula governantes e juízes a 
										tornar as verdades 
										irrelevantes.Desaparece o domínio dos 
										fatos.