Theresa Catharina de Góes Campos

     

PRIVACIDADE HACKEADA

Em Trinidade e Tobago o pessoal do Partido Indiano precisava eleger mais representantes para a Câmara de Representantes.

Com isso diminuiria a influência dos afros nos negócios do Estado e na vida do país. Resolveram contratar uma empresa, a Cambridge Analytica, para solução do problema. Com milhões de dados de usuários à sua disposição e possibilidade de desenvolver 5 mil medições para cada indivíduo, havia uma enorme possibilidade de um estudo consistente sobre a clientela: a sociedade. E descobriram que a juventude, em sua maioria, se sentia excluída pelas Políticas. Eles consideravam que não tinham voz nas decisões do país.

A empresa começa a trabalhar para convencer os jovens a não votar. Entre as estratégias para exacerbar os sentimentos de desesperança no voto, criou uma campanha a “Do SO” - “de repúdio ao fazer político e que vendia o ato de não votar, como forma de rebeldia contra o estado do País”, como explica Rafael Rodrigues. Paralelamente, houve intensa distribuição de perfis falsos na Internet, espalhando a ideia entre a juventude. Com exibição de grupos de dança de jovens e muitas iniciativas espontâneas. Resultado: houve um aumento de 6% na abstenção dessa camada da população, enquanto os jovens indianos eram encaminhados para votar pelos país. O Partido Indiano, em uma eleição que ficou para a história, ganha pela primeira vez seis cadeiras para a Câmara de Representantes.

Na eleição de Donald Trump em 2016 a mesma empresa, Cambridge Analytica, volta a intervir. Trata-se de trabalhar os 22.000 eleitores “persuasíveis”, identificados através de um intenso estudo que dividiu o país em áreas e regiões. Um vídeo, tornado público, mostra algumas figuras proeminentes da empresa, inclusive o seu C.E.O Alexander Nix, numa mesa de bar comentando as estratégias para derrubar Hillary Clinton. Um deles comenta sua melhor criação: um vídeo que mostra Hillary e um par de algemas. Esse foi um dos objetivos da campanha da empresa: torná-la uma candidata desonesta, inadequada. A campanha distribuiu vídeos, memes, fake news. Aparecia a candidata tossindo, cansada, tropeçando. Enfim, desconstruíram de forma cirúrgica, a sua imagem. Ela perdeu para Trump, mesmo ganhando nos votos populares, na estranha forma de eleição dos EUA. A candidata faria melhor do que Trump? Internacionalmente, não há a menor dúvida. E não teria envergonhado tanto o país.

Outra campanha da empresa para intervir diretamente em decisões nacionais, através de estratégias dirigidas e compradas, foi a do Brexit. Inicialmente, parecia que a população inglesa não queria a separação da Inglaterra da Comunidade Europeia. Após intensa campanha realizada pela Cambridge Analytica, venceu a decisão da separação. A que interesses serviu, seria uma boa pergunta. Intervenções desse tipo se repetiram na Austrália, Armênia, México e Malta. A ação da empresa no processo de influenciar cidadãos, utilizando dados pessoais sem conhecimento de seus usuários, é feita com a multiplicação de perfis falsos, de vídeos, memes e fake news. A máxima aqui implícita é: “se você não paga para usar, você é o produto”.

O fenômeno da intervenção de empresas para mudar artificialmente as escolhas políticas, em diversos países, foi descoberto a partir do escândalo do Facebook. David Carrol, professor de design da mídia da Parsons Scholl, moveu um processo contra a empresa, exigindo a devolução de seus dados, utilizados sem o seu conhecimento. A imprensa investigativa desempenhou enorme papel com Carole Cadwallardr, jornalista do “The Guardian”, quando iniciou uma intensa investigação sobre a apropriação e o uso ilegal de dados. Cuja utilização, afirma, interferia nas democracias e soberania dos povos. A jornalista foi alvo de uma estratégia de difamação e ridicularização por parte da empresa

Cambridge Analytica. O mesmo aconteceu no Brasil com a jornalista Patrícia Campos Mello, que escreveu “A Máquina do Ódio” – notas de uma repórter sobre fake news e violência digital”.

Foi o testemunho de Brittany Kaiser, ex-diretora de desenvolvimento da Cambridge Analytica, que permitiu o conhecimento da realidade de todo o trabalho da empresa. Cujo lucro, explica, é maior do que o do petróleo e envolveu o uso de dados de cerca de 87 milhões de usuários do Facebook. Foram 30 mil histórias por dia, difamando o Brexit na Inglaterra e Hillary Clinton nas eleições americanas. Dados que foram acessados através de permissão concedida pelo Facebook e não somente relacionados aos usuários diretos, como aos dos amigos também. E conseguidos no preenchimento de um simples questionário. Incluindo informações essenciais de identificação, financeiras, as relacionadas a personalidade e escolhas políticas.

MarK Zuckeberg não soube explicar exatamente o que aconteceu com a permissão inicial, que ele deu para utilização dos dados pela Cambridge. A Comissão de Investigação sobre mídia e fake news no Parlamento inglês, desenvolveu um trabalho de investigação durante 18 meses. A Cambridge Analytica pediu falência e Alexander Nix parece não ter recebido punição. Os legisladores consideraram que empresas de tecnologia devem ser responsabilizadas por “material ofensivo e enganoso” em seus websites. E a pagarem impostos para que as redes sociais possam ser reguladas. Lembrando que nos EUA, nas últimas eleições, empresas suspenderam mentiras propagadas por Donald Trump, ele ainda presidente. No Brasil, ao começarem os processos e investigações sobre fake news, se iniciaram os ataques a sistemas de dados, com prisões de alguns dos envolvidos. Quem paga para manter o sistema?

Curiosamente, todos os que ganharam eleições a partir da manipulação da opinião pública, agradeceram a Deus em seu primeiro pronunciamento após a vitória. Inclusive o senador Ted Barney. Sim, certamente a um Deus, porém essencialmente diferente. Pois se trata de um sistema tecnológico de poder, que destrói imagens públicas e influencia o destino dos países. Colocando em dúvida a democracia, a essência do sistema representativo que é a vontade popular. São as cleptocracias virtuais. Dos despreparados para o confronto honesto com os adversários.

E que conseguem pagar por resultados que são incapazes de alcançar por seus próprios méritos. Foram caracterizados como servos do autoritarismo.

Segundo Brittany, a ferramenta que a Cambridge Analytica tinha em mãos, não era apenas um facilitador de marketing em massa. Era uma verdadeira arma de manipulação de mentes, usadas para mudar os rumos de uma nação. Um alerta quanto ao perigo para a democracia, é dado pela jornalista Carole Cadwallardr do “The Guardian”.

Ou seja, a democracia é atacada não somente pela violência ostensiva, física. Não somente por medidas “legais”, que corroem o sistema democrático. Acrescente-se a violência e a manipulação virtual. Lidamos com um assalto tão ou mais poderoso, infiltrado no cotidiano dos cidadãos que utilizam os WhatsApp, o facebook, instagram, twitter, etc. Vejam o documentário “O dilema das redes”.

“Privacidade Hackeada” é um documentário realizado em 2019, produzido e dirigido por Jehane Noujaim e Karim Amer. Com roteiro de Karim Amer, Pedro Kos e Erin Basnett. Ao final, gostaríamos de ressaltar a coragem dos produtores de documentários, que se propõem a desvendar a verdade das organizações criminosas. Assim como a necessidade de identificação daqueles que financiam essas organizações. É preciso não esquecer o quanto podem ser devastadoras as estratégias de manipulação da mente dos cidadãos. Um trabalho cujo maior ou menor êxito depende também da
 capacidade de conhecimento crítico da sociedade. E, nesse ponto, a sociedade brasileira parece bastante fragilizada.

Por fim, é motivo de orgulho e esperança a ação transformadora de cidadãos, que ousaram confrontar o poder do sistema criminoso, como David Carrol e Carole Cadwallardr. E não vamos esquecer: “Se você não paga para usar, você é o produto”. Tentemos entender os motivos.

LUÍZA CAVALCANTE CARDOSO
(03/2021)
 

Jornalismo com ética e solidariedade.