ANTOINE DE SAINT-EXUPÉRY VIVENCIOU TUDO QUE
ESCREVEU
Pedras, para ele, não eram empecilhos nem
obstáculos. Como elementos para edificação de
catedrais e a construção do mundo, realizada a
cada dia, as pedras de seus escritos se tornam
metáforas de profunda riqueza espiritual. Suas
palavras nada têm de fantasiosas; recorre a
símbolos, porém expressa sentimentos reais,
formulados na sinceridade de seu coração.
Antoine de Saint-Exupéry (1900 - 1944) vivenciou
tudo que escreveu: livros, cartas, versos,
artigos jornalísticos na Espanha e na Rússia.
"O Pequeno Príncipe" também registra suas
experiências de vida, como piloto, escritor e
amigo.
Mente sensível, a refletir com profundidade
sobre temas essenciais, cada frase de
Saint-Exupéry nos comove e toca lá no fundo, em
dimensões emocionais cujo significado
desconhecíamos. As metáforas repetidas
sintetizam o pensamento filosófico do autor,
determinado a fazê-las presentes na realidade
vivenciada por seus leitores.
Profissional, como escritor e piloto, sofreu
incompreensões, calúnias e perseguições
literárias. Como isso tudo lhe deve ter sido
doloroso!
Não elogiava a coragem, porque exaltava a
doação, o sacrifício, a substância; os laços
eram enriquecimento interior do espírito, de
significado amplo. Denunciava a desordem, a
confusão da guerra, mas experimentava a paz na
simples partilha do pão, que ele reconhecia
também como alimento espiritual da comunidade.
Enfatizava a importância do devir, sem aceitar o
determinismo do futuro. Compreendeu que derrotas
e vitórias são palavras merecedoras de reflexão,
para delas se extrair o verdadeiro significado,
em cada circunstância, se vergonhosa ou
merecedora de exaltação.
Ao escrever o texto "Uma exortação à paz",
propôs, no final, "que a fé no progresso também
enobreça a paz." Interpretei que necessitamos
realizar esse enobrecimento para que a paz não
venha a representar apenas covardia, medo,
egoísmo, omissão...
No solo e no ar, os pilotos e personagens de
Saint-Exupéry, incluindo ele próprio, mostram-se
atentos às estrelas. A prosa do herói francês,
pioneiro das linhas aéreas, voo noturno e
correio aéreo, alinha-se ao comportamento
descrito nos versos de Olavo Bilac: "Ora
(direis) ouvir estrelas! Certo, / Perdeste o
senso! E eu vos direi, no entanto, / Que, para
ouvi-las, muitas vezes desperto /
E abro as janelas, pálido de espanto..."
Aviador, jornalista e piloto de guerra, ele
enxergava as ligações entre os homens, em seus
livros exaltadas, visíveis nos sacrifícios,
sofrimentos e na doação de si mesmos. Portadores
de correio precioso em voos noturnos,
mensageiros e "pastores de estrelas", como
liricamente se expressou. Embaixadores de algo
superior a eles.
"Ao morrer levava, sem se dar conta disso, as
mãos cheias de estrelas." (Cidadela)
Reafirmou esse conceito das ligações entre os
homens em "Cidadela", ao definir com precisão,
objetivamente:
"Onde se diz que há egoísmo, o que sempre
encontramos é mutilação. E aquele que anda por
aí sozinho a dizer:
"Eu, eu, eu," como que anda ausente do reino.
Assim a pedra fora do templo, ou a palavra seca
fora do poema ou aquele fragmento de carne
separada do corpo."
Na mesma obra, publicada após sua morte, exaltou
a colaboração:
"A pedra não tem esperança de ser outra coisa
que não pedra. Mas, ao colaborar, ela se
congrega e se torna templo."
Saint-Exupéry buscou sem cessar o essencial,
ressaltando se preocupar em definir o que seria.
Um verbo de sua preferência para elogiar ações
humanas é "construir".
Em "Cidadela", o autor argumenta que as orações
não têm resposta porque Deus não é um escravo
das vontades humanas, ao mesmo tempo que vê o
trabalho também como prece.
A repetição dessas reflexões demonstra a
relevância dos temas que são primordiais em sua
obra. O teor de sua Prece da Solidão surpreende,
na beleza e pungência das palavras mais simples.
Desvela a dor maior dos solitários...
Aceita o sofrimento como um caminho para o
aperfeiçoamento espiritual. Adverte que ninguém
pode ser responsável somente por vitórias. Quem
é vitorioso precisa assumir a responsabilidade
igualmente pelas derrotas. Ele não quer receber
provisões, mas promessas. Identifica com
segurança o que significa instrumento, caminho e
passagem...para que aconteça a transformação em
algo maior que si mesmo. Como o trabalho das
idosas, no exemplo registrado em "Cidadela" -
tecem panos para as celebrações na igreja, que
se tornam oração. Com certeza, essa busca
espiritual o inspirou a chamar os pilotos do
correio aéreo e do voo noturno, em seu arriscado
trabalho pioneiro, de "pastores de estrelas",
imagem lírica portadora de sentimentos místicos.
O escritor e aviador Antoine de Saint-Exupéry
jamais se cansou de elogiar, liricamente, em
muitas páginas de seus livros, a figura do
jardineiro.
Escreveu: "Odeio sua virtude de robôs. Quanto
a mim, nasci para ser jardineiro." (Et je hais
leur vertu de robots. Moi, j’étais fait pour
être jardinier. Saint-Exupéry)
Interpreto como elogio dirigido aos que cultivam
um jardim em sua vida - eis uma metáfora,
abrangente e aberta, àqueles dedicados a
cultivar o caráter, os estudos e as realizações.
Assim constroem uma vida abençoada pela riqueza
interior.
Olhos que viram uma guerra nunca mais serão os
mesmos...talvez se recusem a ver
superficialmente, porque valorizam o essencial.
Penso que nessa experiência pessoal de "Piloto
de guerra" (1942), com a pátria invadida,
submissa e humilhada, esteja a gênese do que
Antoine de Saint-Exupéry escreveu em "O Pequeno
Príncipe" (1943), sua fábula pungente: "Os olhos
são cegos. O essencial é invisível para os
olhos. É preciso procurar com o coração."
Lembro ainda que os conflitos bélicos terminam,
teoricamente, nos tratados assinados entre
países, mas os traumas interiores, os conflitos
íntimos, as tragédias pessoais e familiares
continuam a existir no coração humano.
Em todas as suas obras (O Aviador, Correio Sul,
Voo Noturno, Piloto de Guerra, Terra dos Homens,
Carta a um Refém, Cartas à sua Mãe, Cartas à
Juventude, O Pequeno Príncipe, Cidadela,
Anotações - 1935 - 1939, Um sentido para a
vida), inclusive nas reportagens que fez na
Rússia e na Espanha, encontramos a valorização
do "encontro", como experiência humana que
envolve amizade, laços de convivência, plano
divino, sentimentos de afeto e amor.
Compreendeu que "viajar é transformar-se
interiormente." (Correio Sul)
Foi muito preciso ao definir, em sua magistral
"Cidadela", usando apenas três substantivos
comuns:
"O amor é o exercício do coração."
Com a palavra "exercício", ressaltou o dinamismo
e a repetição, requisitos para a continuidade e
permanência do amor.
Saint-Exupéry não se deixava monopolizar pela
ciência que seduzia a muitos com seus avanços
tão apregoados. A sabedoria o embevecia, o que
confessava explicitamente. Ele acreditava no
sorriso, no toque da graça, no sonho, no milagre
e na poesia. Aliás, as palavras milagre e amor
abundam em todos os seus textos.
Em várias ocasiões, arriscando a própria vida,
Saint-Exupéry demonstrou habilidade ao negociar
e conseguir resgatar alguns pilotos, mantidos
reféns pelos mouros sob ameaças de morte, por
tribos árabes sublevadas, no deserto do Saara.
Por esses atos de negociação corajosa e
competente, foi condecorado pela França com o
grau da Ordem Nacional da Legião de Honra. Em
1929, ao se tornar diretor da empresa de aviação
postal argentina, descobriu novas rotas, fez
acordos de travessia e ainda liderou missões
para resgatar aviadores em situação de risco.
Na vida do próximo, ele encontrou sentido e
direção para a própria existência, rica em
ousadia, criatividade e recolhimento. Uma vida
breve, que se tornou plena em realizações e
reflexões preciosas.
Theresa Catharina de Góes Campos
Brasília - DF, 14 de julho de 2021
-------------------Ler também:
'Piloto de Guerra' mostra que Saint-Exupéry não
foi autor de uma obra só
DE SÃO PAULO
26/09/2015
https://www1.folha.uol.com.br/guia-de-livros-filmes-discos/2015/09/1684409-piloto-de-guerra-mostra-que-saint-exupery-nao-foi-autor-de-uma-obra-so.shtml
------------
https://www.abul.org.br/biblioteca/85.pdf |