Theresa Catharina de Góes Campos

     
Encontro com a haicaísta Madoka Mayuzumi
 
Haicaístas:

 A haicaísta Mayuzumi Madoka proferiu em 27/07/2021 uma palestra on-line (legendada) com o título “Haicai: Aquilo que permeia esse espaço vazio”. A palestra, previamente gravada, foi seguida por uma apresentação ao vivo da pesquisadora brasileira Olívia Nakaema sobre a composição de haicai em português, com sessão de perguntas e respostas ao final, quando os participantes foram convidados a escrever haicais. Madoka Mayuzumi retornará em 18/08/2021 num evento ao vivo (tradução simultânea) onde   comentará os haicais enviados.

Ela trabalhava como bancária até descobrir o haicai e, por meio dele, ganhar o Prêmio Kadokawa de 1994 com sua coletânea de haicais “B-men no natsu” (Verão lado B). Publicou ao todo sete coletâneas, uma das quais ganhou o Prêmio Literário Yamamoto Kenkichi. Também escreveu livros de ensaios, diários de viagem e libretos de óperas. Serviu como embaixadora cultural japonesa na França entre 2010 e 2011.

Mayuzumi contou sobre como como foi atraída para o haicai após a leitura do seguinte poema de Sugita Hisajo (1890-1946):

 hana goromo nugu ya matsuwaru himo iroiro

 Veste de hanami

Despir e desamarrar

Os muitos cordões.

(versão para o português de autor não identificado) 

O haicai descreve o retorno de um hanami, ou seja, um passeio para admirar a florada das cerejeiras. Era costume mandar fazer um quimono especial para a ocasião, chamado de hana goromo, traduzido como “veste de hanami”. Os versos seguem descrevendo o ato de se despir, desatando um a um os diversos cordões que sustentam o traje. Mayuzumi enxerga um amontoado de cordões, ainda quentes com o calor do corpo, caindo sobre o tatami, e, ao centro deles, uma mulher. Fora da casa, o cenário noturno das cerejeiras floridas.

Para Mayuzumi, é um poema lindo, mas também um poema de lamentação. Os cordões representariam as amarras da sociedade da época, intolerante para mulheres talentosas como Hisajo, que morreu aos 56 anos sem conseguir publicar um livro com seus haicais. Ela poderia expressar diretamente seu lamento, mas preferiu que ele permeasse as entrelinhas de seus elegantes versos. Dessa forma, seus sentimentos se sublimam e ganham dignidade, transcendem a individualidade e atingem em cheio os corações dos leitores como os gritos das mulheres daquele tempo.

Mayuzumi usa esse poema para ilustrar como funcionam os haicais. Nesses versos, não se usa a expressão direta e a exposição crua dos sentimentos, substituídos pela descrição de cenários naturais e de coisas, permeadas pela sugestão e pela imaginação do leitor. Ou seja, um haicai é formado de palavras e do espaço vazio entre elas. O haicai caracteriza-se pela subtração de palavras. A subtração amplia a imaginação. Para reforçar essa ideia, ela relembra Bashô, que disse: “O que resta se tudo já foi dito?” Quando se mostra tudo, nada sobra para imaginar.

O haicai, para Mayuzumi, é uma forma fixa com algumas regras:

1. Em primeiro lugar, deve existir uma menção à estação. A primeira estrofe do renga, forma que antecedeu ao haicai, era sempre uma saudação aos participantes e à estação. Essa última permanece no haicai.

2. Em segundo lugar, a forma fixa que, Mayuzumi propugna, cada idioma deve encontrar. Para ela, a contagem de 5-7-5 sílabas se adapta bem à língua japonesa.

3. Em terceiro lugar, a cesura ou corte, pausa interna do poema que cria descontinuidade e vazio, proporcionando um assomo de comoção e ressonância.

Para Mayuzumi, a forma é fixa mas não é limitante. Para ela, não há nada mais flexível do que a liberdade de se mover dentro dos limites de uma forma. Ela usa o exemplo olímpico da ginástica solo, em que o atleta deve se restringir a um quadrado de 12m x 12m. 

Obviamente, o atleta que sair fora do quadrado perderá pontos. Entretanto, se, por segurança, ele decidir se exercitar apenas no miolo, fará uma atuação rudimentar. A maior pontuação virá quando ele usar todo o espaço disponível, correndo o risco de tocar o lado de fora do quadrado, o que o espectador acompanha com o coração na mão. Se a área de atuação fosse ilimitada, a apresentação não seria tão tensa, mas a beleza do espetáculo também seria menor.

O haicai também é assim, mas ao invés de usar as 17 sílabas para comprimir o máximo de informação, suprimimos palavras para expressar toda  a profundidade do mundo.

Ela acrescenta que as artes japonesas se apoiam fortemente na forma. Se, por exemplo, não houvesse regras para a Cerimônia do Chá, esta seria apenas um encontro para tomar chá. Do mesmo modo, um haicai sem regras seria apenas um poema breve.

Mayuzumi enfatiza o papel do vazio no haicai. Alguns dos conceitos enunciados com esse fim são “literatura do silêncio” e “estética do vazio”. 

Muitas artes tradicionais japonesas como o Ikebana, o Teatro Nô, a Cerimônia do Chá e a Cozinha enfatizam os espaços criados pela subtração, derivando sua riqueza dos espaços criados pela ausência de elementos. Para a palestrante:

“Não é apenas poesia breve. Consiste em delegar a expressão dos sentimentos às coisas. Literatura das coisas não ditas. A dificuldade no entendimento e fruição estão nesse silêncio. Mas por outro lado é o elemento que proporciona prazer. Além disso, dizemos que é a literatura do momento. Não faz referência ao tempo cronológico pois não conta histórias e sentimentos mas manifesta o aqui e o agora, como a paisagem ou o canto dos pássaros. Assim forma-se o espaço entre as palavras.”

O haicai é um momento de cumplicidade entre o leitor e o poeta. Mas não adianta, segundo Mayuzumi, usar palavras difíceis para valorizar a profundidade dos espaços vazios. Essa profundidade só virá com a prática constante e a experiência de vida. Igualmente, o leitor só conseguirá vislumbrar essa profundidade após ler muitos haicais. Do mesmo modo, sua imaginação, de onde vem a capacidade de enxergar as entrelinhas, é diretamente proporcional à sua experiência de vida.

Mayuzumi resume os princípios ou a filosofia do haicai em três ideias:

1. A valorização da natureza e a consideração por outros seres vivos. “Ao criar um haicai, vidas se comunicam: eu com as flores, eu com os pássaros, insetos, etc., nascendo daí um intercâmbio entre essas vidas. Ao compor, expressamos o respeito à natureza, às pessoas e aos seres vivos. Além disso, o processo de escrever nos leva a uma viagem profunda ao nosso próprio interior. Por meio da natureza e de outros seres vivos repensamos nossas vidas, encontramos uma oportunidade de autoconhecimento e o potencial dentro de nós mesmos.”

2. Satisfazer-se com o que se tem, corolário da estética subtrativa: “A ambição só reproduz mais ambição e nunca proporciona satisfação. O ato de compor haicai é como realizar uma subtração de palavras. Treinamos para retirar os excessos e adornos das palavras. Por fim, vamos imaginando o que há nas entrelinhas formadas nesses espaços entre as palavras.”

3. Imaginar sobre o espaço vazio (imaginar aquilo que está nas entrelinhas, imaginar a verdade por trás dos fatos): “Quando componho, disponho as palavras, mas concomitantemente atento-me a dispor os espaços entre as palavras. E ao ler esse poema, composto com vários espaços entre as palavras, o leitor deve explorar o que existe entre esses espaços vazios”.

Mayuzumi Madoka, como muitos de nós, acredita que o haicai e a postura do haicaísta têm a chave para resolver muitos dos problemas do mundo. Ela lembra que a arte não tem efeito tão direto como uma vacina, mas tem o poder de confortar a alma e dar força para continuar. Novamente Bashô é citado: “O haicai é inútil”. Trata-se de uma ironia. Na verdade, o que o Mestre quis dizer é que o haicai é tão importante que não há nada na vida que se equipare, daí ser inútil comparar. Na inutilidade do haicai talvez resida o segredo da plenitude da vida humana.

O vídeo da palestra pode ser visto neste link do Youtube:

 https://youtu.be/rXfNlfS-qBI

 Abraços,

 

Jornalismo com ética e solidariedade.