Haicaístas:
As nações disputam seu lugar
ao sol no concerto mundial exercitando ora
seu poder bélico, ora seu poder econômico.
Mas também existe o poder da cultura,
qualificado pela expressão “soft power”.
Nesse contexto, cada país procura exibir ao
mundo sua melhor expressão, com a finalidade
de imprimir uma imagem positiva e criar
simpatia, que pode ser usada posteriormente
como moeda no complicado xadrez político.
Muitos se lembram com espanto
de uma das cenas do encerramento das
Olimpíadas do Rio, em 2016. O
Primeiro-Ministro japonês compareceu em
pessoa ao Maracanã para anunciar o país-sede
dos jogos seguintes... vestido de Super
Mario, o personagem de videogame. Isto não é
uma piada. É o reconhecimento político da
pujança de uma indústria cultural que
arrecada bilhões em royalties e contribui
para projetar a imagem de um país dinâmico,
onde o moderno e o antigo convivem sem
conflitos.
Bem antes da invenção do
console Nintendo, o Japão já se esmerava no
exercício do soft power, percebendo o
fascínio despertado por sua riquíssima
tradição. É por isso que vemos a diplomacia
japonesa se engajando na divulgação cultural
de modo tão forte quanto na negociação de
tratados comerciais. Tomemos o exemplo do
haicai. Recentemente assistimos à palestra
da haicaísta Madoka
Mayuzumi, realizada
sob os auspícios do Consulado-Geral do Japão
em São Paulo. No seu retorno, comentários
sobre os poemas produzidos por brasileiros e
enviados para sua apreciação.
Páginas de
Haïkaï de Bashô et des ses disciples (Foto: edition-originale.com)
Isso traz à mente outro
episódio, descrito em nosso livro “Cesto de
Caquis”, em que a diplomacia japonesa
divulgou o haicai: em 1936, a Embaixada do
Japão distribuiu a intelectuais e
jornalistas brasileiros exemplares da
recém-publicada antologia “Haïkaï de Bashô
et de ses Disciples”. Tratava-se de um
volume contendo poemas traduzidos para o
francês por Kuni Matsuo e
Émile-Steiner-Oberlin, com ilustrações
coloridas de Foujita, artista japonês
radicado na França. A publicação era do
Instituto Internacional para Cooperação
Intelectual, entidade antecessora da Unesco.
O haicai vira assunto de
coluna social (Reprodução: Folha da Manhã)
Coincidentemente, foi nessa
época que o Japão assentou um genuíno haijin
à frente do Consulado-Geral em São Paulo.
Falamos de Ichige Kôzô (1894-1945) ou Kozo
Itigé, como romanizava oficialmente seu
nome, que assinava seus haicais como
Gyôsetsu (“Neve do Crepúsculo”, na tradução
de Guilherme de Almeida). O perfil a seguir
se baseia nas informações disponíveis no
sítio do Centro de Estudos Nipo-Brasileiros
(Ichige Kôzô. Centro de Estudos
Nipo-Brasileiros, 12 ago. 2010. Disponível
em <cenb.org.br/articles/display/209>.
Acesso em 08 ago. 2021).
Itigé nasceu na província
japonesa de Ibaraki. Em 1918, após formar-se
em alemão pela Universidade Imperial de
Tóquio, ingressou na diplomacia.
Inicialmente foi assistente consular, função
que desempenhou em Hong-Kong. No ano
seguinte foi promovido a diplomata e então
serviu na Alemanha, Suécia e Áustria. Em
1926 veio para o Brasil como Segundo
Secretário da Embaixada do Japão (Rio de
Janeiro). Em 1930 voltou para a Áustria e em
1933 retornou ao Brasil como Primeiro
Secretário da Embaixada. Em 1934 foi
promovido a Cônsul-Geral e mudou-se do Rio
para São Paulo.
Conta-se a seguinte história:
Havia um funcionário no Consulado que
conhecia muito bem São Paulo. Seu nome era
Tetsuo Umimoto e já havia acertado o seu
retorno ao Japão quando Ichigé foi nomeado.
O novo Cônsul-Geral desejava muito que
Umimoto permanecesse no Brasil para ajudá-lo
a se aclimatar ao estado. Para convencê-lo,
fez o que sabia: enviou-lhe um haicai:
shûkô ya uma kaete mireba
katame nari
Arado de outono --
Ao trocar de cavalo
Ele tem só um olho!
Umimoto teria ficado tão
impressionado com o haicai que adiou por
algum tempo sua repatriação.
O Cônsul Itigé ou, melhor
dizendo, haijin Gyôsetsu, envolveu-se
bastante com o mundo do haicai da colônia
japonesa. Sabe-se que frequentou o grêmio de
haicai Sansui Kwai, dirigido por Keiseki
Kimura, e para lá chegou a levar seu amigo
Guilherme de Almeida (1890-1969).
Lembremo-nos de que Almeida lhe dedicou o
famoso ensaio “Os meus haikais”. Podemos
anotar a presença do Cônsul no Primeiro
Concurso de Haicai de São Paulo (língua
japonesa), realizado em 1937 nas
dependências do Clube Japonês. Numa foto,
ele se alinha na fila dianteira, sentado no
quarto lugar a partir da esquerda, seguido
de Nempuku
Sato (1898-1979) e Keiseki
Kimura (1867-1938), mestres pioneiros do
haicai.
Primeiro Concurso de Haicai
de São Paulo, 1937 (Foto: acervo de Gyudoshi
Sato). A foto tem um bônus: Na segunda
fileira, o rapaz
na terceira posição à
esquerda é Goga Masuda, aos 26 anos.
Em dezembro do mesmo ano,
deu-se o retorno ao Japão. É dessa época o
“Relatório de Retorno do Brasil”, publicado
na revista japonesa “Haikai” de abril de
1938 e assinado por Ichige Gyôsetsu:
“Há uma imigração de braços e
ao mesmo tempo uma imigração de cabeças. O
fato de o haicai ser praticado há muito
tempo pode ser constatado em recortes de
antigos jornais nipo-brasileiros. Mas, por
ser econômico o motor da imigração, parece
que o haicai foi deixado à própria sorte
durante todo esse tempo. Dez anos atrás, com
a chegada de Keiseki Kimura e Nempuku Sato,
pode-se dizer que o haicai brasileiro entrou
em uma nova era e sua forma foi claramente
definida. Trinta anos após o início da
imigração, a população [de imigrantes
japoneses] é de 200 mil pessoas e sua
produção agrícola ultrapassa 2 bilhões de
ienes. Paralelamente a isso, o mundo do
haicai, que corresponde a um aspecto da vida
espiritual dos imigrantes, também ficou mais
animado.”
Seguem-se alguns haicais de
Gyôsetsu:
tonikaku ni koya wa
tachitari kabocha maku
Tão logo se acaba
de levantar o barracão,
plantar abóbora!
hanetsuku o shirade jûni
to naru ko kana
Não sabe jogar
hanetsuki* --
Menina de doze anos.
* peteca japonesa,
tradicionalmente praticada no Ano Novo
mikazuki ya kokoku hanarete mitose tateshi
Lua de três dias –
Faz três anos que deixei
A terra natal.
saki hokoru kiku ya nippon
ryôjikan
Que orgulho
do crisântemo que se abriu --
Consulado do Japão.
uma katte hiite kaerinu
wata no aki
Volto de cavalo
comprado e arreado --
Outono do algodão.
kozue naru kiwata oumu no
kui chirasu
Os papagaios
espalham as plumas
da copa do algodoeiro.
Ichigé permaneceu em seu país
até 1939, quando foi designado para servir
na antiga Tchecoslováquia, já ocupada pelo
nazismo. Retornando pela última vez ao Japão
em 1940, aposentou-se da carreira
diplomática para ingressar na iniciativa
privada. Após a ocupação das Filipinas pelas
tropas japonesas, transferiu-se para esse
país no comando da filial da Companhia
Têxtil Kanegabuchi. Porém, com a derrota do
Japão, refugiou-se na selva e lá contraiu
uma doença fatal. Eis o seu poema de morte (jisei):
tenshin ni hi arite ware
ni kage nakari
Apenas o sol
paira no alto do céu–
Não há sombra para mim.
Kozo Ichigé, Cônsul-Geral do
Japão em São Paulo de 1934 a 1937 (Foto: cenb.org.br)
Abraços,
Edson Kenji Iura
kakinet@gmail.com
www.kakinet.com