SUPREMO
TALIBÃ FEDERALOs ministros do STF têm o aplauso ativo
e entusiasmado da mídia, das classes
intelectuais e de todo o vasto mundo que
pode ser descrito como a elite urbana do
Brasil
J. R. Guzzo
20 AGO 2021
O deputado Daniel Silveira, preso pelo
Supremo Tribunal Federal desde o último
mês de junho, pediu ao Supremo Tribunal Federal — que é ao mesmo tempo policial,
carcereiro e juiz em todo o processo de
sua prisão — autorização para utilizar
o seu telefone celular. Sua intenção era
voltar a participar dos trabalhos na
Câmara dos Deputados — se o seu mandato
não foi cassado até agora, e ninguém assumiu
o seu lugar, por que não poderia
trabalhar a distância, em regime de
“prisão office?”
Como o
presidente da Câmara não deixa — num
caso possivelmente único na história
parlamentar do mundo livre, esse presidente e a maioria dos demais
deputados são a favor da prisão —,
Silveira entrou com um mandado de
segurança no STF, reivindicando o exercício do seu
direito. No STF? Pura perda de tempo, é
claro. A ministra Cármen Lúcia, a quem
coube julgar o pedido, naturalmente disse “não”; quem
é ela para desagradar o colega Alexandre
Moraes e outros peixes gordos do STF, que fazem questão de exterminar o
deputado e sua carreira? Mas Cármen,
além de obedecer, resolveu pensar — e o
resultado foi mais um desses momentos de superação
que só os 11 ministros conseguem
apresentar hoje em dia ao público
pagante. Ela disse em seu despacho, acredite se
quiser, que não podia ir contra a
decisão do presidente da Câmara para não
violar a “independência entre os Poderes”.
Ficamos
assim, então. O STF pode perfeitamente
enfiar na cadeia, por quanto tempo
quiser, um deputado federal em pleno exercício do seu mandato, algo que faz
em desrespeito absoluto às imunidades
parlamentares e à Constituição
brasileira. Mas não pode contrariar o deputado Arthur
Lira quando ele resolve que Silveira
está proibido de usar o telefone celular
e de exercer o seu mandato em esquema de tornozeleira
remota. Quando prende um deputado, o STF
não ofende em nada a “independência entre os Poderes”, segundo o seu
entendimento da vida e do mundo. Depois
da prisão, vira um defensor extremado da
ideia de “separação” do Legislativo e Judiciário.
Que nexo faz um negócio desses?
Não faz
nexo nenhum, como continua
incompreensível a prisão, dias atrás, do
presidente do PTB, despachado para o
presídio de Bangu por ordem do mesmo ministro do
Supremo — hoje o marechal de campo de
uma cruzada heróica, segundo a mídia, as elites e as empreiteiras de obras
públicas, contra aquilo que ele
considera “atos antidemocráticos”, “fake
news” nas redes sociais e delitos de bolsonarismo em
geral. Mas aí é que está a chave do
sucesso crescente do STF: ninguém, a
começar pela classe política, está interessado numa
Corte Suprema que faça nexo. Tudo o que
importa é perguntar o seguinte: “Como a
gente faz para obedecer?”
A partir
de agora, o dinheiro tem de ir para uma
conta do TSE
Jefferson foi preso em flagrante, mas
até agora o ministro Moraes e o grupo de
policiais que opera sob o seu comando
direto não conseguiram descrever que crime ele
estava praticando na hora em que o
camburão chegou — ou nas 24 horas
anteriores, ou em qualquer outro momento. É certo que
Jefferson, como Silveira, fala as
maiores barbaridades do STF e da conduta
dos seus ministros; também organiza manifestações de rua
contra todos eles, com caminhoneiros,
tratores e um cantor de música caipira.
Mas qual é a lei que proíbe essas
coisas?
O ex-deputado poderia ser processado por
injúria, difamação e até mesmo calúnia
pelos ministros, como está previsto no
Código Penal. Só que não foi; esses delitos, aliás,
não permitem a prisão de ninguém. Foi
preso e pode ficar em Bangu até o fim da
vida, ou enquanto o STF quiser, por
“atentado contra a democracia”. Que
atentado, exatamente? Formação de grupos
clandestinos para tomar o
governo? Aquisição secreta de armas?
Treinamento de guerrilha? Distribuição
de senhas, codinomes e “pontos”? Planos
detalhados para fazer a ocupação do
governo? Captura da central de
eletricidade? Ninguém diz nada.
O mesmo
mistério envolve a última e talvez mais
extravagante decisão da “Resistência a
Favor da Democracia” instalada nas
Cortes Superiores de Justiça deste país.
Um funcionário do Tribunal Superior
Eleitoral, no cargo de “corregedor”,
mandou que as grandes plataformas de
comunicação social — Twitter, YouTube,
Facebook, etc. — parem imediatamente de
pagar as somas que devem aos canais com
orientação política de direita, pela
transmissão dos seus conteúdos. A partir
de agora, o dinheiro tem de ir para uma
conta do TSE. É isso, e não se discute
mais o assunto.
Nem na
Justiça? Nem na Justiça. Segundo os
altos tribunais federais, este é um caso
que não pode ser apreciado pelo
Judiciário brasileiro; tudo deve ser
resolvido lá em cima. O TSE não tem
absolutamente nada a ver com a
publicação de notícias, de comentários e
de opiniões nas redes sociais; trata,
exclusivamente, de questões eleitorais,
que vão do registro de candidatos à
apuração dos resultados da eleição. Mas
o que é a lei, a mera lei, diante da
missão de salvar a democracia no Brasil,
coisa muitíssimo mais importante,
segundo o STF e seus subúrbios? O
resultado é que blogs e sites com
posições de direita, ou bolsonaristas,
ou anticomunistas, foram punidos sem que
a punição tenha sido determinada por
nenhum juiz, em nenhum processo
judicial, com direito de defesa e as
outras garantias mínimas estabelecidas
pela lei brasileira.
A decisão
não saiu do nada, é claro. O corregedor
do TSE decidiu, para justificar o
castigo, que os canais aos quais aplicou
o bloqueio
financeiro estavam publicando “fake news”
— assim mesmo, em inglês, como se não
fosse obrigatório o uso do idioma
nacional em todos os documentos
oficiais. Muito bem: e daí? E se os
comunicadores punidos realmente
publicaram notícias falsas? Que diabo a
repartição pública que cuida de eleições
tem a ver com isso? Mais: não existe, em
nenhuma lei, o crime de “publicar
notícia falsa”, ou
fazer “desinformação”. Como alguém pode
ser castigado por cometer um crime que
não existe? Da mesma forma que nos casos
anteriores, divulgar mentiras num
veículo de comunicação pode dar processo
criminal por injúria, difamação ou
calúnia — além de penas cíveis como
pagamento de indenizações em dinheiro e
retratação dos autores ou dos órgãos de
imprensa que fizeram a publicação. Mas
é isso, e só isso. Não cabe ao TSE ou a
nenhum braço do Estado, fora as varas de
Justiça, decretar punições contra quem
usa o direito de livre expressão,
garantido pelo Artigo 5 da Constituição.
Pela
decisão tomada, além disso tudo, o TSE
acaba de dar a si próprio o direito de
definir o que é verdade e o que é
mentira no território brasileiro. Pode?
O corregedor, com a colaboração da
polícia — sempre ela, a polícia,
ocupando o primeiro plano em todas essas
histórias —, decidiu, autorizado não se
sabe por quem, que as notícias
publicadas pelos sites “A” ou “B” são
falsas; as dos sites “C” e “D” são
verdadeiras. Como são falsas, na opinião
do burocrata do TSE, têm de ser punidas
— mesmo que a lei brasileira
não estabeleça nenhuma punição para
isso. É algo inédito no Direito
universal.
Daniel
Silveira, Roberto Jefferson e os canais
de comunicação de direita formam uma
soma.
Os casos narrados acima comprovam que
estão indo para o espaço, por ação
direta dos tribunais supremos e
superiores, três regras absolutamente
fundamentais no presente sistema legal
brasileiro. A primeira é que ninguém
está obrigado a fazer ou deixar
de fazer alguma coisa a não ser em
virtude da lei. A segunda é que ninguém
pode ser acusado por crime que não
esteja definido por lei anterior; além
disso, todo e qualquer crime tem de ser
“tipificado”, como dizem os juristas —
ou seja, tem de ser descrito
com absoluta clareza para valer alguma
coisa. A terceira determina que só o
Ministério Público tem o direito legal
de acusar criminalmente alguém — e que o
cidadão só pode ser julgado por um juiz
de Direito, após o devido processo
judicial.
Não são coisas que o Brasil deve à
“Constituição Cidadã” e a outras
bobagens do nosso folclore
político-ideológico; estão aí
desde sempre e fazem parte, em todo o
mundo civilizado, dos direitos
fundamentais dos seres humanos. O
desrespeito sistemático e crescente a
esse e a outros mandamentos da lei
transforma o país, cada vez mais, numa
republiqueta subdesenvolvida de
Terceiro Mundo — e numa sociedade que
vai se acostumando a viver num estado de
exceção. Não é assim em tudo, claro — o
que faria do Brasil uma Cuba ou uma
Venezuela, onde milhares de infelizes
lotam hoje as prisões. Mas é exatamente
assim em tudo o que o STF
quer que seja.
Daniel
Silveira, Roberto Jefferson e os canais
de comunicação de direita formam uma
soma; tudo isso está indo na mesma
direção.
O STF, a menos que se transforme em algo
diferente do que tem sido, parece
perfeitamente decidido a continuar
assim. Por que não? Os ministros têm o
aplauso ativo e entusiasmado da mídia,
das classes intelectuais e de todo o
vasto mundo que pode ser escrito como a
elite urbana do Brasil. Estão numa
disputa de força com o presidente da
República e seus sistemas de apoio — e
vêm
ganhando todas as paradas. Não encontram
planos, ações organizadas nem preparo do
outro lado.
O STF está
funcionando cada vez mais como um
Supremo Talibã Federal.