Haicaístas:
Palavras que borbulham como refrigerante retrata
o romance de dois adolescentes que floresce
à sombra das redes sociais,
em meio a poemas haicai e à nostalgia dos
discos de vinil, tudo tingido por uma paleta
de cores quentes de verão.
O filme de animação japonês (animê), lançado
em 2021 e dirigido por Ishiguro Kyôhei, faz
parte do catálogo da Netflix.
Trailer oficial: https://youtu.be/Sfu6cplThgQ
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Um romance para todas as gerações
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O rap do haicai
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Explosão de vida (contém spoilers)
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Dezessete verões (contém spoilers)
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A dança das cerejeiras (contém spoilers)
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Ficha técnica
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Um romance para todas as gerações
O verão chegou na fictícia cidade de Oda,
quando as férias escolares asseguram tempo
livre aos jovens. Reproduzindo uma realidade
tão comum aos nossos dias, o ambiente seguro
e agradavelmente climatizado de um moderno
shopping center é onde todos vão procurar
lazer nos dias de calor. Com toda a
comodidade, ali está concentrada uma gama
de serviços indispensáveis à vida moderna.
Há até mesmo um centro de cuidados em
esquema day care, para onde
os familiares levam e trazem diariamente
seus idosos, liberando-se para o trabalho. É
um serviço cada vez mais frequente de se
ver. Muitas pessoas aqui no Brasil acabam
usando a denominação creche para idosos,
na analogia com as creches infantis.
Lá trabalha Cherry (Cerejinha, na versão
brasileira), um rapaz introvertido de 17
anos, fazendo um bico de meio período como
cuidador. O idoso ao qual se sente mais
ligado é Fujiyama. Ambos compartilham o
interesse pelo haicai, forma
poética tradicional de dezessete sílabas
fundamentada no diálogo com a natureza.
Apesar do ponto em comum, seus diálogos nem
sempre são frutíferos, pois Fujiyama é surdo
e se comunica aos gritos. Isso é algo que
Cherry não suporta. Os fones de ouvido que
usa em todo lugar não tocam nenhuma música,
servindo apenas para abafar o ruído exterior
e inibir a aproximação de estranhos. É
terrivelmente envergonhado para falar em
público. Além de dois ou três amigos, sua
única janela para o mundo é a rede social
onde publica seus poemas. Apesar de tanta
inibição, ele anseia por reconhecimento, mas
admite, embaraçado, que a única pessoa a dar
“like” assiduamente em seus haicais é
a própria mãe.
Em outra ala do shopping existe um
consultório odontológico onde encontramos
Smile (Sorrisinho, na versão brasileira. Ela
está fazendo a manutenção periódica do
aparelho que usa para corrigir seus
incisivos projetados para a frente, como
os da Mônica. Ao contrário de Cherry, Smile
é luminosa e desinibida, especialmente em
suas lives (transmissões ao vivo)
na mesma rede social de Cherry, acompanhadas
por milhares de seguidores. É o que se chama
atualmente de influenciadora digital.
Entretanto, Smile tem vergonha de seus
dentes e de seu aparelho, permanentemente
escondidos por uma máscara cirúrgica.
Mesmo no Japão pré-pandêmico, esconder o
rosto atrás de uma máscara era uma atitude
relativamente comum. Alega-se resfriado ou
alergia, quando na verdade não houve tempo
de fazer a maquiagem ou simplesmente se
deseja privacidade. Para Smile, a máscara
representa um momento de baixa autoestima. A
adolescência é uma fase de mudanças
bruscas, tanto físicas quanto mentais. É
normal que isso traga uma sensação de
inadequação do próprio corpo. É o caso de
Smile, que até há pouco tempo achava kawaii (fofos)
os seus dentes saltados e agora os esconde
envergonhada.
Esses dois adolescentes tão diferentes terão
a chance de se conhecerem. Como dois nativos
digitais, usarão as ferramentas que têm,
literalmente, ao alcance das mãos. Através
de seus celulares, começam por curtir as
postagens um do outro. Não demora para que
apertem juntos o botão “seguir”, uma ação
cheia de simbolismo que delimita a fronteira
entre a amizade e algo mais.
Mas antes que o romance prospere, cada um
precisará enfrentar seus fantasmas: Cherry
tem dificuldade em dar voz aos
seus sentimentos, acreditando mesmo que isso
não é necessário, como numa ocasião em que
tentou justificar que seus haicais
se bastavam como arte escrita, dispensando a
declamação em público. Por outro lado, a
expansiva Smile precisa aceitar a
sua aparência e perceber que pode ser amada
do jeito que é, sem a necessidade de se
esconder.
Enquanto isso, Cherry e Smile conectam-se
com o velho Fujiyama. Eles descobrem que a
capa vazia obsessivamente carregada pelo
idoso continha um disco gravado por sua
esposa, falecida há meio século. Por anos, a
única coisa que Fujiyama fez na vida foi
tentar resgatar esse disco para ouvi-lo pelo
menos mais uma vez antes de morrer. Um dos
momentos mais tocantes do filme é ouvir
Fujiyama relatar aos jovens que, apesar de
ter sido o disco que mais ouviu na vida, até
mesmo essa memória querida desapareceu com o
tempo. É quase em tom de súplica que o idoso
murmura: “não quero esquecer, mas não me
lembro”. A velhice cobra o preço de
desfalcar beleza e vitalidade, mas o que
pode ser mais cruel do que levar até mesmo a
memória, justamente aquilo que nos define e
dá sentido à vida?
O filme é, assim, um tratado sobre conexões.
Enquanto sozinhos, os protagonistas são
inseguros e se fecham nas redes sociais. No
momento em que se conectam, um elogia no
outro justamente aquilo que se acreditava
ser uma fraqueza e assim ganham confiança
para crescer. Outra conexão ocorre com os
idosos do centro de cuidados, especialmente
com Fujiyama. Por causa dela, os jovens
conhecem novas realidades, saem em busca da
tradição e da história de sua cidade e
mergulham no mundo nostálgico dos discos de
vinil. Terão assim a oportunidade de
resgatar uma história de amor de meio século
atrás e nela se refletirem.
Por fim, uma conexão importante que perpassa
o filme é a do dinamismo das lives e
tuítes das redes sociais se
combinando harmoniosamente com a
contemplativa tradição do haicai e o lento
passo da dança de Daruma, ensaiada com
afinco pelos idosos para sua apresentação no
festival vindouro. Estamos falando de um
filme dirigido à Geração Z, mas que ressalta
a importância do cuidado com os mais velhos
e com tudo o que se pode aprender com eles.
Este é o primeiro longa-metragem dirigido
por Ishiguro Kyôhei, 41 anos, antes
conhecido por séries como Your Lie in
April e Occultic;Nine. O visual
exuberante é traduzido por poucas sombras e
silhuetas bem delineadas, preenchidas por
uma paleta de cores quentes e chapadas. A
luminosidade e a alegria da estação estão
bem representadas.
Na verdade, há muita nostalgia envolvida.
Muito do estilo do filme veio do gosto de
Ishiguro, pelas efervescentes
capas desenhadas por Suzuki Eijin e Watase
Seizô nos anos 1980 para álbuns do gênero city
pop (que passou por um revival recente). Quanto
à música, a principal canção do filme foi
encomendada a Ônuki Taeko, compositora e
cantora que iniciou a carreira nos anos 1970
e se ligou ao mesmo movimento musical. Essa
atmosfera retrô temperada pela onipresença
das redes sociais combina bem com a proposta
de unir dois mundos separados pelo tempo.
A animação é fluida e expressiva, tanto nas
cenas de ação quanto na linguagem corporal
dos personagens, transmitindo veracidade e
empatia dentro das convenções visuais
consagradas do gênero. A riqueza de
informações visuais é impressionante, a
começar pelo shopping center, modelado em 3d
a partir de um estabelecimento real, o Aeon
Mall de Takasaki, da província de Gunma.
O detalhismo continua no centro de cuidados,
onde cadeiras de rodas convivem com os
computadores usados nas
tarefas administrativas. Suas paredes são
preenchidas por pôsteres coloridos, quadros
de avisos e, ressaltando a importância do
haicai para o centro e para o filme,
diversos tanzaku (tiras de papel com
poemas escritos), quadros com a caligrafia
dos kigôs de verão e um enorme kakemono com
um poema de Fujiyama. Na casa de Smile, o
quarto onde ela convive com suas duas irmãs
tem arquitetura de loft e decoração
de sonho. Mesmo o modesto dormitório de
Cherry é rico em detalhes, como o calendário
com haicais de Bashô e Kyoshi e exemplares
da revista Haiku, da editora Kadokawa.
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O rap do haicai
Uma das ideias mais interessantes deste
filme foi o uso de haicais comentando ou
dialogando com as cenas. Além disso, há o
destaque dado à própria prática poética. É
raro ver termos técnicos como kigô (termo
de estação) e saijiki (dicionário de kigôs)
serem pronunciados em filmes, o que pode ser
conferido nas legendas em português (a
versão dublada prefere outros caminhos). O
personagem principal anda com um saijiki preso
à capa do celular. O próprio título do filme
em japonês é um haicai. Em entrevistas, o
diretor Ishiguro Kyôhei afirma ter adotado o
gênero após a leitura de um livro de
diálogos entre o haicaísta Kaneko Tôta e o
multiartista Itô Seikô (Tairyûjiai Haiku
Nyûmon Shinken Shôbu, Ed. Kôdansha). Lá
ele anotou a curiosa passagem “o haicai é o
começo do hip-hop no Japão”.
Foi nesse momento que ocorreu o insight de
Ishiguro: “Itô Seikô está entre os
fundadores do rap [manifestação
poético-musical da cultura hip-hop] japonês
e tem uma percepção muito aguçada sobre o
haicai. Sabendo que o haicai se conecta com
o contexto musical do hip-hop, pensei: por
que não incorporar o haicai como gênero
musical?” Isso resultou na introdução de
haicais fazendo parte ativa do enredo, além
de serem usados como vinhetas e pano de
fundo.
Inicialmente, o diretor percebeu que seria
difícil para a sua equipe escrever com
qualidade todos os haicais necessários.
Mais importante que isso, era necessário que
eles tivessem o sabor da poesia produzida
por um estudante do ensino médio. Isso
foi resolvido recorrendo a estudantes reais,
todos creditados ao fim do filme (Coube ao
poeta Kurose Karan, por sua vez,
se encarregar dos haicais do idoso Fujiyama).
A produção recebeu mais de cem haicais que
exerceram muita influência no
trabalho final. Como exemplo, o diretor cita
a cena em que Cherry compõe o haicai “Falsa
largada/ na hora do entardecer –/ Luzes
de verão”, que Smile classifica como “fofo”.
Essa reação ocorreu de verdade, durante um
dos kukai (reunião para leitura de
haicais),
e foi incorporada ao roteiro.
Dessa maneira, os haicais pontuam
organicamente o filme inteiro, sem parecerem
forçados. Eles podem estar
presentes diretamente no enredo, com sua
leitura disparando comportamentos dos
personagens, ou então como intertítulos, em
que sua aparição incidental numa pichação
comenta ou antecipa ações do enredo. Mesmo
tendo estrutura tradicional, sua linguagem
é compatível com o que se espera de um poeta
adolescente, envolvido num mundo urbano e
tecnológico. A disseminação dos
poemas pelas redes sociais e através da arte
de rua é outro aspecto que chama a
contemporaneidade. A pequena extensão do
haicai é perfeita tanto para um tuíte quanto
para uma pichação. É óbvio que essa
organicidade só pôde ser
obtida encomendando-se haicais adequados ao
roteiro pretendido, já que Cherry é um
personagem fictício. Por outro lado, ao
mostrar na prática como trabalha um
haicaísta, o filme ganha autenticidade.
É interessante aprofundar a leitura de
Ishiguro. Vimos que Itô Seikô disse ao
haicaísta Kaneko Tôta: “O haicai é o começo
do hip-hop no Japão”. Um aspecto do haicai
japonês é sua dependência intertextual, seja
através da citação de textos da
tradição literária japonesa e chinesa, seja
através dos kigôs, palavras de
convenção compartilhadas por gerações de
haicaístas de todos os tempos para cantar
fenômenos ligados às quatro estações. Essa
intertextualidade pode ser interpretada como
uma amostragem, ou seja, guarda certa
correlação com os samples ou
empréstimos de trechos musicais.
Quanto à rima como a conhecemos, ou seja, a
coincidência intencional de sons entre
versos, essa não se desenvolveu na linguagem
poética tradicional japonesa. O que Kaneko
Tôta explicou é que o haicai é um poema com
ritmo 5-7-5, onde se escolhem as palavras
adequadas a esse ritmo. Cada palavra
escolhida deixa sua própria impressão e
essas impressões reverberam entre si, em
ritmo. Essa reverberação particular pode ser
poeticamente chamada de rima.
É assim que entendemos a declaração
entusiasmada de Itô Seikô, que acrescentou:
“O haicai tem rima e tem samples.
É completamente hip-hop!”. Se o haicai tem
a ver com o rap, talvez haja espaço para
discussão. O fato é que, em um momento
culminante do filme, acabamos presenciando
algo que podemos identificar como um
brilhante cruzamento do rap com o haicai.
Aviso de spoiler: A partir deste ponto,
pode haver revelações importantes do enredo.
Talvez seja preferível
assistir o filme antes de prosseguir com
a leitura.
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Explosão de vida
A seguir, repassaremos alguns dos haicais do
filme com nossa versão para o português,
lembrando que as versões apresentadas no
filme são transcrições em prosa corrida
feitas para atender às necessidades de
legendagem e dublagem. Os kigôs estão
grafados em itálico nas traduções.
O primeiro momento do filme é praticamente
um cartão de visita: a visão de um típico
prédio de conjunto residencial, onde uma
pichação concorre com a hera que
progressivamente avança sobre a parede. A
pichação na verdade é um haicai que anuncia
o endereço de Cherry, apelido do adolescente
Yui Sakura:
aotsuta no danchi bokura wa san-maru-go
Aqui nós moramos –
Condomínio Hera Verde
trezentos e cinco.
Dentro do apartamento 305, vamos encontrar
Cherry aprontando-se para o trabalho
enquanto revisa em voz alta alguns de seus
últimos poemas. Ele é cuidador em
meio-período no centro para idosos situado
no shopping center. A cena não deixa
dúvidas: Cherry é um jovem haicaísta
dedicado a anotar cada pequena cena do
dia-a-dia de sua localidade. Ele não larga o
celular, mas seus haicais têm métrica e kigô (palavras
de estação). Eis um exemplo,
inspirado pelos onipresentes campos alagados
de arroz que cercam sua cidade:
sora tooshi aota no ue o tayutau hi
Bem longe no céu
Sobre os verdes arrozais
o sol cintilante.
Nenhuma criatura é pequena demais ou
insignificante para a sua atenção:
amembo ga minamo ni
nokosu hamon kana
Aranha-d’água –
Na superfície em que desliza
deixa ondulações.
Gente e natureza, tudo parece em harmonia
neste lugar:
natsufuku ga tambo to haeru jimoto kana
Na minha cidade
As roupas de verão ornam
com os arrozais!
O verão está presente em todos os lugares.
No céu, os cúmulos-nimbos fazem contraste
perfeito contra o céu azul enquanto ouvem-se
as cigarras ao fundo e os campos verdejantes
de arroz estendem-se até o horizonte. Há
ventiladores espalhados por todos os cantos
e até mesmo os pratos preparados pelas donas
de casa (melão amargo refogado e macarrão
gelado) são típicos da estação.
ue o muku mono no oosa
yo natsu kitaru
Voltadas para o alto
tantas coisas e pessoas!
O verão chegou.
Os haicais que aparecem no filme são quase
todos escritos por Cherry. Alguns poucos são
de Fujiyama, um idoso frequentador do centro
de cuidados com um grande conhecimento de
haicai, que se torna um tipo de mentor
para Cherry. Um haicai do idoso pode ser
visto caligrafado num grande kakemono dependurado
na parede da instituição:
hatsu ake ya oite koso jinsei bakuhatsu
Primeira manhã do ano –
A velhice, de verdade,
é explosão de vida!
É algo que não se espera da idade, talvez um
incentivo aos frequentadores, talvez a
filosofia de vida de Fujiyama. Ele é surdo,
por isso às vezes se exprime aos berros,
como ao declamar, de forma aparentemente
aleatória, o seguinte haicai:
kanjô ya shônen umi
yori agari keri
Com teus sentimentos
vai, levanta-te, meu jovem,
acima do mar!
Trata-se de um poema sem kigô de
Settsu Yukihiko (1947-1996), em forma de
chamamento, ao qual se reserva uma
importante função posterior. “Nos haicais de
Settsu há mistério e movimento, além de
atribuir som às paisagens”,
discorrem Cherry e Fujiyama sobre o autor.
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Dezessete verões
No verão, o shopping center está sempre
lotado de famílias, para as quais são
organizadas atividades de lazer, sendo uma
delas uma graciosa corrida de bebês. A
partir de estímulos adequados, espera-se que
os pequenos engatinhem em direção à linha de
chegada. Uma das crianças, pouco afeita à
formalidade do sinal de partida, dispara na
frente sob o olhar aflito da supervisora que
grita em vão: “falsa largada!”, “falsa
largada!”Cherry, que a tudo assiste, tem um
estalo: pode ser a ideia para um novo
haicai. Uma das graças do filme está em
mostrar esses momentos da prática poética
com os quais todo haicaísta vai se
identificar. Seu primeiro ato é contar nos
dedos as sílabas da expressão “falsa
largada”. Seguro de que ela cabe em uma
linha de haicai, confere sua existência no
dicionário de kigôs (saijiki ou kiyose)
que sempre carrega. Há muitos kigôs vivenciais,
inclusive ligados a esportes. Por que não?
Mas sua procura é bruscamente interrompida
em consequência da confusão gerada pelo
endiabrado amigo Beaver. Ao fugir
da segurança do shopping, ele tromba com
Cherry e também com Smile, que casualmente
passava pelo local transmitindo mais uma live.
O par é lançado ao chão sem consequências
mais graves do que o desprendimento da
máscara de Smile, revelando a Cherry o que
ela queria esconder do mundo. Com efeito, a
primeira palavra, balbuciada pelo atordoado
mas atento rapaz ao olhar para Smile, é
“aparelho”. Percebendo sua intimidade
exposta, Smile abandona o local em carreira
desesperada. Cherry, ao contrário,
levanta-se estoicamente e, esquecido de seu
primeiro achado, passa a contar as sílabas
da palavra “aparelho”, disposto a usar sua
nova descoberta.
Ao fim do turno de trabalho, Cherry vai
descansar com seus amigos Japan e Beaver.
Inspirado pelo belo pôr do sol à sua frente,
ele resolve compor algo com a palavra
“entardecer”, mas nada lhe ocorre no
momento. Beaver é um espevitado filho de
decasséguis latino-americanos. Ele espera
melhorar seu conhecimento de língua japonesa
pichando os haicais de Cherry em cada parede
vazia que encontrar. Os erros de troca de kanji (ideogramas)
que comete involuntariamente são fonte de
alívio cômico e ao mesmo tempo trarão a
chave para conectar o passado e o presente
do filme.
Em outro dia, vemos um grupo de idosos sendo
conduzido para um passeio pelo shopping para
compor haicais. É o ginkô, ou passeio
poético, outra atividade típica dos
haicaístas. Nisso, são orientados pela
professora Miyuki, auxiliada por Cherry, que
toma conta dos idosos. Ao fim da atividade,
o grupo é reunido e a professora começa a
ler em voz alta os haicais produzidos.
Inesperadamente, o tímido Cherry é instado a
ler o próprio poema:
shoppingu mooru yûyake
ni toketeyuku
Até o shopping center
vai se derretendo aos poucos –
Arrebol da tarde.
Mortificado pela vergonha, nosso herói ainda
se recupera da leitura quando Fujiyama
declama seu haicai. A presença de Smile,
assistindo à reunião mal escondida por uma
mureta de vidro, foi a fonte de inspiração:
semigoe ya masuku
hazusenu shôjo ni mo
Canto da cigarra –
Mesmo a garota de máscara
consegue escutar.
É o começo da amizade entre Cherry e Smile,
que resolvem voltar juntos para suas casas.
Durante o caminho, Smile pergunta a Cherry
se ele cria haicais com facilidade, ao que
ele responde que sim, desde que esteja
num dia bom. Estimulada pela resposta, Smile
faz o pedido que todo haicaísta odeia:
“Então tente fazer um [agora]!” De início
embaraçado pela demanda, Cherry começa a
juntar lentamente as peças de um
quebra-cabeças: Primeiro, repara que, ao fim
da tarde, as luzes da rua já se acenderam,
talvez um pouco cedo demais. Em seguida, as
lembranças de dias atrás sobre a corrida de
bebês e a imagem do entardecer juntam-se em
sua mente.
O resultado é este haicai:
yûgure no furaingu meku natsu tomoshi
Falsa largada
Na hora do entardecer –
Luzes de verão.
Smile adora o resultado, que classifica de
“fofo”, deixando Cherry um pouco perplexo.
Também achamos “fofa” a atualização do
significado de um kigô tradicional
como “luzes de verão”. Enfim, a amizade
cresce e vai se moldando em outro tipo de
sentimento:
jû nana kai me no
shichigatsu kimi to au
No décimo-sétimo
julho da minha vida
eu encontrei você.
Julho é verão no Japão. Dezessete verões
Cherry já viu passar. Aos dezessete anos ele
encontrou o amor. A convivência com uma
pessoa diferente traz a necessidade de olhar
o mundo sob novas perspectivas:
himawari ya kawaii no i o jisho ni kiku
Girassol --
Perguntei ao dicionário
o que significa “fofo”.
De novo, “fofo” é o paralelo entre a
trajetória da flor o dia inteiro perseguindo
o sol e a busca de Cherry por uma resposta.
Ele não ignora que a personalidade luminosa
e sincera de Smile esconde um segredo:
aoba yami riyu wo shiritai dake nanda
Sob as folhas verdes
uma grande escuridão –
Só quero o motivo.
No verão a folhagem torna-se densa e
luxuriante a ponto de, às vezes, bloquear a
luz do sol. Mas de seu lado, Cherry sabe que
os sentimentos se acumulam no peito e
precisam encontrar um caminho de saída.
Então compõe o haicai que dá título ao
filme:
Saidaa no you ni kotoba ga wakiagaru
As minhas palavras
borbulham como se fossem
um refrigerante.
Saidaa é a pronúncia japonesa de cider ou
cidra, bebida gaseificada à base de maçã.
Após sua introdução no Japão da Era Meiji,
passou a identificar todo tipo de bebida
gaseificada não alcoólica, que nós chamamos
de refrigerante.
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A dança das cerejeiras
A partir da metade do filme, a ação se
transfere para a antiga loja de discos de
Fujiyama. Da surrada capa de disco que o
idoso carrega para todo lugar, cai uma velha
filipeta com um haicai escrito pelo próprio:
sayônara wa iwanu mono nari sakura mau
Adeus é palavra
que não ouso pronunciar –
Dança a cerejeira.
É um poema que expressa a saudade de
Fujiyama, mas que também ecoa em Cherry.
Para ele está chegando a hora de dizer
adeus, por causa de sua mudança iminente,
mas falta-lhe coragem.
yû niji ya kimi ni
iitai koto ga aru
Arco-íris da tarde –
Tem uma coisa que eu quero
dizer pra você.
O arco-íris é como um sinal que aparece para
chamar a atenção ou funcionar como lembrete.
Entretanto, todas as oportunidades que
aparecem são perdidas por hesitação.
O título na capa do disco de Fujiyama é Yamazakura.
É o nome de uma árvore e também um kigô de
primavera. É composto das palavras yama [montanha]
e sakura [cerejeira]. Cherry tem a
oportunidade de ler sobre o assunto. As
mundialmente famosas cerejeiras ornamentais
são o resultado de séculos de manejo e
cruzamentos conduzidos pelos jardineiros
japoneses. Dos galhos nus nascem primeiro as
flores, que caem e dão lugar às folhas. Já
a yamazakura é uma árvore em estado
nativo, em que as folhas novas brotam ao
mesmo tempo que as flores. A tradição
associou a folhagem precoce da yamazakura aos
dentes projetados para a frente das pessoas
dentuças.
Assim, essas pessoas eram antigamente
chamadas de yamazakura. A partir
dessa informação, ele escreveu
o seguinte haicai:
yamazakura kakushita sono ha boku wa suki
Yamazakura –
As folhas que você escondeu
eu gosto delas.
A palavra em japonês para folha(s) é ha.
A palavra para dente(s) tem a mesma
pronúncia: ha. Esse jogo de
palavras, um tipo de kakekotoba, será
escancarado nas pichações equivocadas de
Beaver, que trocará uma palavra por
outra, tornando mais evidentes os
sentimentos de Cherry por Smile. Também é o
caminho que conecta o amor de verão
dos jovens com o amor primaveril de Fujiyama,
vicejado meio século atrás, à sombra das yamazakura.
Há anos Fujiyama busca pelo disco de sua
falecida esposa, a única coisa que o fará
recuperar a memória daquele amor e talvez
agora,
com a ajuda de Cherry e Smile, ele consiga
reavê-lo.
Por puro acidente, Smile finalmente descobre
que Cherry vai se mudar. Magoada pelo
silêncio de Cherry, Smile lembra-o da
promessa quebrada de verem juntos os fogos
de artifício do Festival de Daruma, no exato
dia da mudança. Smile se despede de Cherry,
incapaz de lhe dirigir uma única palavra de
volta:
raimei ya tsutaeru tame ni koso kotoba
Uma trovoada –
As palavras servem sim
para comunicar!
Chegou o dia da mudança e também do Festival
de Daruma, auge do verão na pequena cidade.
Enquanto todos esperam a queima de fogos na
cobertura do shopping, a passagem do carro
de Cherry ao lado do prédio, de saída da
cidade, reaviva os velhos sentimentos. Basta
um pequeno empurrão para que ele tome a
coragem necessária. Os amigos estarão ao seu
lado.
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Ficha técnica
Título: Palavras que borbulham como
refrigerante/ Saidaa no yô ni kotoba ga
wakiagaru
País: Japão
Lançamento: 2021
Duração: 87 minutos
Diretor: Ishiguro Kyôhei.
Roteiro original: Satô Dai e Ishiguro Kyôhei.
Design de personagens e direção de animação:
Aikei Yukiko
Elenco (japonês/português):
Smile: Sugisaki Hana/ Jeane Marie
Cherry: Ichikawa Somegorô/ Rafael Schubert
Fujiyama: Yamadera Kôichi/ Ricardo Rossato
Distribuição: Netflix
Abraços,
Edson Kenji Iura
kakinet@gmail.com
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Haicaístas:
Eis o mesmo artigo publicado na web com
revisões. Está mais fácil de ler (acho),
ilustrado e dividido em duas partes, melhor
para compartilhar.
https://www.kakinet.com/cms/?p=3072
Abraços,
Edson Kenji Iura
www.kakinet.com