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VIDA DE REPÓRTER
Honrado pelo convite,
passo a narrar alguns fatos relacionados com
minha vida de profissional de imprensa, desde
que cheguei a Brasília, em abril de 1963, quando
comecei a trabalhar para o jornal O Estado de
S. Paulo, instalado inicialmente numa das
casas geminadas, de dois andares, da Avenida W3,
em frente ao extinto Cine Cultura e mudada
depois para a sobreloja do Edifício JK,
localizado no Setor Comercial Sul.
Um dos mais sérios
problemas da cidade naquele momento era o do
abastecimento. Faltava tudo. Açúcar, por
exemplo, era quase uma raridade. Para conseguir
um litro de leite - só havia o do tipo C,
acondicionado em reles sacos plásticos -
originário de Goiânia ou do Triângulo Mineiro,
as pessoas se postavam, desde a madrugada, em
frente aos supermercados da extinta Sociedade de
Abastecimento de Brasília – SAB. O problema não
era de fácil solução, pois, dependia da
implantação da bacia leiteira nas cidades do
entorno do Distrito Federal. A primeira
iniciativa do Ministério da Agricultura – que eu
cobria, para o jornal, assim como os demais
ministérios, exceto o Itamaraty – foi a de criar
a cooperativa de fornecedores de leite da cidade
mineira de Unaí, cuja distância de Brasília é de
aproximadamente 180 km.
Mas foi uma áfrica chegar a Unaí,
num jipe velho, escangalhado, dirigido pelos
funcionários da Assessoria de Imprensa do
Ministério, que se encarregavam ainda de
documentar em fotos os mais expressivos momentos
da viagem, iniciada na madrugada de um sábado,
às cinco horas, e concluída, às quinze e trinta,
daquele mesmo dia sob ameaça de chuva. A cada
cinco quilômetros percorridos, o jipe parava,
ora por problemas mecânicos, ora porque atolava
no lamaçal, deixado pela chuva da véspera,
necessitando da nossa força bruta para tirá-lo
do atoleiro.
Reportagens como essa de Unaí,
com fotos, seguiam pelo malote para serem
aproveitadas nas alentadas edições dominicais do
jornal, cuja seção de classificados, pródiga em
duvidosas ofertas de empregos, criava falsa
impressão sobre o porte da nossa economia,
submetida à estagnação. As matérias do dia-a-dia
eram transmitidas por duas máquinas de telex e
um transmissor de radiofotos, usados em parceria
com a United Press International – UPI
–, cuja agência funcionava também na sucursal.
Além disso, havia dois funcionários destacados
para ditar por telefone matérias mais curtas,
produzidas ao final do dia, próximas do
fechamento da edição.
Após o golpe militar de abril de
1964, perpetrado sob os auspícios em parte do
jornal, meu empregador, o qual sofreria também,
mais tarde, os abusos do autoritarismo, que lhe
impingiu forte censura ao noticiário – ao
diapasão da que havia pedido antes para o teatro
brasileiro – fui destacado para cobrir a
presidência da República, que divulgava a cada
dia volume enorme de normas legais, introduzindo
profundas modificações nos sistemas financeiro,
econômico e jurídico do país, as quais
necessitavam por isso de serem bem detalhadas
para se tornarem de fácil acesso à compreensão
pública. Uma das notícias mais tristes que
transmiti, nesse período, foi a do ato
institucional que cassou por dez anos os
direitos políticos de Juscelino Kubitschek de
Oliveira, que eu conhecera como governador
de Minas, nos meus tempos de política estudantil
em Uberaba.
Depois, ainda no primeiro governo
militar, fui encarregado da cobertura do
plenário da Câmara dos Deputados, que me exigia
também atenção e poder de síntese para
reproduzir, com a exatidão possível, discursos
de parlamentares, de variadas tendências
políticas, que comentavam a difícil conjuntura
brasileira. Momentos dramáticos foram os que
passei em vigília, sempre acesa, madrugada
adentro, acompanhando a resistência do
Parlamento, que ainda guardava alguma dignidade,
ante a ameaça de seu fechamento – concretizado
mais tarde - com tanques e canhões assestados em
sua direção, posicionados na Esplanada dos
Ministérios, enquanto aviões da Força Aérea
Brasileira – FAB – faziam vôos rasantes, de
intimidação, sobre as duas cúpulas do Congresso
Nacional.
Ainda nos anos sessenta, o jornal
Correio Braziliense incumbiu-me de
estabelecer e assinar colunas críticas e
noticiosas, regulares, de cinema e teatro, no
seu Caderno Cultural, editado por José Helder
de Souza. Era aquele o tempo áureo do
neo-realismo italiano, da nouvelle vague
francesa, do cinema novo brasileiro e de
excelente fase de alguns cineastas suecos,
poloneses, japoneses, ingleses e
norte-americanos. Apesar da censura, o teatro
brasileiro experimentava também um grande
momento. Para que não só eu manifestasse opinião
sobre os filmes lançados na cidade – pobre de
programações culturais -, criei o Conselho de
Críticos de Brasília. Integrei também por quatro
vezes o Júri de Seleção do Festival de Brasília
do Cinema Brasileiro e organizei, para a
Aliança Francesa, a Retrospectiva dos Filmes
de Gérard Philipe, comemorativa dos dez
anos da morte do ator.
Um dos grandes desafios que
enfrentei, porém, foi o de dirigir, em caráter
interino, a sucursal de Brasília da revista
Veja, em substituição a Dirceu Brizola,
mandado como correspondente à Europa. Eu então
me especializara em economia, pois, era o único
repórter, em Brasília, de outra publicação da
Editora Abril, a newsletter
Análise da economia para homens de negócios.
O distanciamento da cobertura política não me
impediu, entretanto, de realizar bom trabalho à
frente da sucursal da Veja, contando com
a ajuda de quatro repórteres, pois os demais se
encontravam em gozo das férias de fim de ano,
quando aconteceram, de forma simultânea, a morte
de Petrônio Portella, ministro da
Justiça, sua sucessão por Ibrahim Abi-Ackel
– um desconhecido, protegido do general
Golbery do Couto e Silva - e a queda do
ministro Karlos Rischibieter, da Fazenda,
substituído por Ernâne Galvêas, além de
alguns outros fatos menos relevantes, ocorridos
na área policial, para os quais contratei
trabalhos de freelancers. A cobertura
valeu-me convite, feito em São Paulo, para
continuar em caráter definitivo à frente da
sucursal, o qual, entretanto, recusei e, afinal,
não consegui trabalhar para a revista por
período superior a doze meses.
Achei difícil adaptar-me à
prática do jornalismo da Veja denominada,
no âmbito interno, de pensatas, segundo a
qual a matéria é pautada com linha definida pela
Editora Abril, não importando quais sejam
as informações colhidas pelos repórteres, isto
é, se serão eles capazes de demonstrar que
aquilo que se pretende publicar é uma verdade ou
não. De acordo com essa prática, não adianta que
os entrevistados apresentem argumentações em
contrário ao que foi pautado, mesmo se baseando
em provas, pois, o que vai prevalecer, ao final,
no texto a ser publicado, será sempre a opinião
recomendada à editoria. Demais, a revista,
naquela época, em tempo de autoritarismo, exigia
de seus repórteres - o que me desagradou -
assinatura de termo de compromisso de que não
publicaria livro de qualquer natureza enquanto
lá estivesse trabalhando.
Em meados dos anos oitenta,
atuando pela segunda vez como assessor de
imprensa do Banco Central do Brasil, admito
haver sido um dos pioneiros no uso do fax – tido
como avanço tecnológico - para transmitir
matéria jornalística ao exterior. De outra vez
em que lá estivera, ao início da década, era por
mensagem de telex – transmitida a hotéis ou às
nossas embaixadas - que eu enviava súmula do
noticiário da imprensa brasileira para orientar
o presidente da instituição em suas negociações
com os credores, depois que o país sofrera a
primeira bancarrota, em 1982, arrastado pelo
México. Daquela feita, 1986, o país também se
encontrava em grande dificuldade para negociar
seus débitos, tanto assim que o presidente da
instituição decidiu encomendar a edição de um
suplemento sobre as potencialidades da economia
brasileira para circular como encarte da revista
Institutional Investor, de grande
penetração nos meios financeiros internacionais.
Embora tenha vindo ao Brasil um repórter da
revista para fazer matérias sobre os diversos
setores da economia, a serem ressaltados no
suplemento, o texto dele foi discutido comigo,
aqui em Brasília, e, por seguidas vezes me foram
submetidas cópias do trabalho – transmitidas por
fax - para que eu o apreciasse, corrigisse ou
ampliasse, antes de ser editado em Nova Iorque.
Infelizmente, apesar da boa repercussão que
alcançou o suplemento, as negociações da dívida
deram no que deram: a moratória, que custou ao
país mais de US$ 3 bilhões, além do descrédito
internacional, de reflexos sentidos ainda hoje.
REYNALDO
DOMINGOS FERRREIRA*
*Natural de
Uberaba, MG, onde participou de movimentos
estudantis, liderou um grupo de teatro e
formou-se em Direito. Em São Paulo, iniciou-se
no jornalismo, trabalhando para o extinto “A
Gazeta” e Rádio Gazeta, da Fundação Cásper
Líbero, além do também extinto “Correio da
Manhã” (sucursal). Em Brasília, trabalhou para
“O Estado de S. Paulo”, “Folha de S. Paulo”,
“Agência Nacional”, revistas técnicas da Editora
Abril e “Veja”. Exerceu três vezes as funções de
Assessor de Imprensa do Banco Central do Brasil
e, duas vezes, as mesmas funções, no Superior
Tribunal de Justiça. É autor de “Três Mulheres
no Palco”, antologia de peças teatrais, uma das
quais, “Dona Bárbara”, montou no Teatro
Nacional, em 1983, Prêmio “Nelson Rodrigues”, do
Governo do Distrito Federal; “Elegia ao Chapéu”,
poema, premiado pela Revista Escrita de São
Paulo, “ Dicionário da Dívida Externa
Brasileira” e “As Raparigas da Rua de Baixo –
Memórias de Infância”.
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