Theresa Catharina de Góes Campos

     
Haigô - nome de haicaísta
 

Haicaístas:

 

De vez em quando me aparecem consultas sobre nomes de haicaísta. Vou discorrer um pouco sobre o assunto.

 

Nome de haicaísta, ou, em japonês, haigô, é um nome literário ou nom de plume, usado por haijins (haicaístas, poetas de haicai), diferente do nome real, civil ou de registro. Por exemplo, Matsuo Kinsaku adotou o haigô Bashô, Kobayashi Nobuyuki tornou-se Issa e Masaoka Noboru assinou seus haicais como Shiki.

 

É preferível usar a palavra haigô, em lugar de haimei. As duas palavras são sinônimas, mas o uso da primeira é muito mais disseminado. Além disso, o vocábulo haimei tem uma segunda acepção, que é de nome social de ator de teatro Kabuki. A única acepção de haigô, por seu lado, é nome de haicaísta. 

 

Adotar um haigô é uma atitude completamente opcional na vida de um haicaísta e provavelmente não vai melhorar ou piorar seus haicais. Já vi as seguintes razões para não ter um haigô, apresentadas por haicaístas que assinam seus poemas apenas com o nome real: 1- Nunca haver pensado no assunto; 2- Considerar falta de coragem não usar o próprio nome; 3- Considerar fraude assinar seu haicai com outro nome; 4- Enxergar na adoção de um nome de haicaísta uma manifestação de narcisismo, ou seja, se achar muito importante.

 

Sobre as razões para adotar um haigô, encontrei o seguinte texto:

 

“Quando proponho adotar um haigô (nome de haicai), algumas pessoas hesitam dizendo: ‘Ainda não é hora, quero melhorar mais um pouco’. Isso é um erro. Um haigô é diferente de um nome atribuído ao discípulo pelo mestre de Cerimônia do Chá ou Arranjo Floral. É simplesmente um segundo nome que você adota por vontade própria e não tem a mesma natureza cerimoniosa de um nome ‘outorgado pelo mestre’. Para quê adotar um haigô? É para traçar uma linha separando o mundo o haicai da realidade da vida familiar e do trabalho. Não importa o quão rico você seja ou quão elevado o seu cargo na empresa. No mundo do haicai, você é um haicaísta que se alinha com outros haicaístas. Não é a ‘Madame Fulana’ ou o ‘Doutor Sicrano’. O haigô corresponde a um sinal de que você está em ‘outro mundo’. Acredito que, quando adotamos um haigô, expressamos a intenção de viver como haijins, livres de todos os grilhões da sociedade” (TSUJI, M; ABE, G. Ichi kara no haiku nyumon. Tokyo, 2018, Shufu no Tomo. p. 180. Nossa tradução.).

 

Assim, um haigô tem função diferente de um pseudônimo, pois não é usado para esconder a identidade real, mas para mostrar a devoção do poeta ao mundo do haicai. Ao renunciar temporariamente ao seu nome civil, o haijin deixa o mundo real para vivenciar a sublime esfera da poesia de haicai. Depois de assinar seu trabalho, o haijin retorna aos seus afazeres mundanos e ao seu nome normal.

 

Não há regra para escolher um haigô. Os japoneses escolhem combinações interessantes de ideogramas, nomes de plantas e animais de seus gostos ou algo que queiram falar de si mesmos. Sabemos que Bashô escolheu ser chamado pelo nome de uma bananeira. Buson quer dizer “aldeia dos nabos”. Issa, “um chá”. Shiki significa “cuco”, um pássaro que a lenda dizia expelir sangue de tanto cantar, assim como o próprio poeta, vítima da tuberculose.

 

Taneda Santôka colheu seu nome, “fogo na montanha”, do Calendário Chinês, por achar interessante a sonoridade. Seu mestre Ogiwara Seisensui tirou do mesmo lugar o nome “água de poço”. Nomes poéticos foram escolhidos por Mizuhara Shûôshi, “aprendiz da flor de cosmos” e Katô Shûson, “aldeia outonal”. Outros preferiram ser autodepreciativos e sarcásticos: Nakamura Kusatao era o “homem podre” e Sakata Dakotsu se identificou como “osso de cobra”. Esses são nomes auto atribuídos. Mas foi o mestre Shiki quem sugeriu o haigô de seu discípulo Takahama Kyoshi. Partindo de seu nome real, Kiyoshi, escolheu uma combinação de ideogramas que significava “aprendiz da imaginação”, apontando para a difícil missão de encontrar o tênue equilíbrio entre realidade e ficção, característica do seu haicai.

 

Muitas mulheres formavam seus nomes de haicaísta acrescentando o sufixo jo, que quer dizer “mulher”. Temos Sugita Hisajo, cujo nome de batismo era Hisa. Nakamura Teijo emprestou da mãe o nome Tei e acrescentou-lhe o sufixo.  Hashimoto Takako manteve o nome original, mas Mutsuhashi Takajo, que também nasceu Takako, trocou o sufixo de seu nome (ko quer dizer filha).

 

Entre os haicaístas que imigraram para o Brasil, temos Uetsuka Hyôkotsu, pai da imigração japonesa, cujo haigô significava “carcaça de cabaça”. O engenheiro Kimura Keiseki era a “pedra afiada”. O mais famoso de todos, Satô Nempuku, sabia de sua característica, talvez um defeito, “pensar com as tripas” e não com a cabeça, ou seja, ser apaixonado e obstinado, pouco cerebral. Masuda Gôga se via como o “Rio Ganges”, ao mesmo tempo o mais sujo e o mais sagrado, síntese de sua humanidade.

 

Foi explicado acima que um haigô é normalmente auto atribuído. Mas há exceções, como vimos no caso de Kyoshi. Masuda Gôga escolheu a pedido os nomes de alguns haijins. O saudoso Douglas Eden pediu um haigô, sugerindo a Gôga que traduzisse seu nome, Douglas, cuja etimologia é “rio escuro”. O mestre, sempre querendo o melhor para seus alunos, inverteu a solicitação, originando o nome Guin Ga, que quer dizer “rio de prata”, isto é, “Via Láctea”. Paulo Franchetti não precisou pedir nada para Gôga, que lhe atribuiu o nome “Ento”, ou seja, “cidade das andorinhas”, epíteto de Campinas. Celso Pestana postulou um gaiato “bafo de onça”, mas o que conseguiu do mestre foi um respeitoso Hyôkô, ou seja, “urro de leopardo”. Outro nome atribuído a pedido por Gôga foi Sennin, eremita da mitologia chinesa com poderes mágicos e que se esconde nas montanhas.

 

Alguns exemplos mais recentes, provavelmente auto atribuídos: Seishin, alcunha do monge carmelita Antonio Fabiano, quer dizer “coração puro”. Matsuki, identidade do paranaense Sergio Pichorim, é “pinheiro” ou, contextualizando melhor, “araucária”. “Emi” é basicamente a tradução para o japonês do prenome de Benedita Azevedo.

 

É necessário que o haigô seja em japonês? Provavelmente não. Eu gostaria de ver haicaístas alcunhados Uirapuru ou Macaxeira. Na verdade, até conheci uma idosa haicaísta cujo haigô era Sabiá. Mas ela era japonesa e o nome do pássaro declarava seu vínculo com o país adotivo. Não é esse o caso dos brasileiros que vão buscar a sua identidade haicaísta. O japonês é o latim do haicai, onde os aficionados vão buscar paradigmas e inspiração. Se o haigô é o portal para um parnaso onde poetas se imaginam escrevendo ao lado de Bashô e Issa, parece que a imersão nesse mundo não será completa sem um nome japonês. Além disso, um nome em japonês (mais exato seria dizer sino-japonês) é sintético e elegante, como vimos nos exemplos acima: “Cidade das Andorinhas” comprime-se em meras duas sílabas: “Ento”.

 

Com todos esses dados na mesa, cabe a cada um decidir se quer adotar um haigô. Cuidado com dicionários online e outros atalhos. Se a opção for por um nome japonês, isso deve ser feito de forma segura, através de um professor de língua japonesa de nível avançado, selecionando a escrita correta e eliminando combinações foneticamente infames. É possível que muitas palavras sejam possíveis de representar apenas com a escrita silábica katakana, ao invés dos vistosos ideogramas. O haicaísta deve avaliar se isso o satisfaz. 

 

Por se tratar de uma língua exótica, é importante dizer que todo cuidado é pouco e o vexame ronda quem comete erros. Vejam os casos das tatuagens de ideogramas, em que o tatuado pensa estar escrita uma palavra e o desenho na pele indica um significado diferente. Como dissemos acima, um nome de haicaísta é inteiramente opcional e não vai melhorar a qualidade do haicai.

 

Abraços, 

Edson Kenji Iura

kakinet@gmail.com

www.kakinet.com

 

 

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