Haicaístas:
De vez em quando me
aparecem consultas sobre nomes de
haicaísta. Vou discorrer um pouco sobre
o assunto.
Nome de haicaísta, ou, em
japonês, haigô, é um nome literário ou
nom de plume, usado por haijins (haicaístas,
poetas de haicai), diferente do nome
real, civil ou de registro. Por exemplo,
Matsuo Kinsaku adotou o haigô Bashô,
Kobayashi Nobuyuki tornou-se Issa e
Masaoka Noboru assinou seus haicais como
Shiki.
É preferível usar a
palavra haigô, em lugar de haimei. As
duas palavras são sinônimas, mas o uso
da primeira é muito mais disseminado.
Além disso, o vocábulo haimei tem uma
segunda acepção, que é de nome social de
ator de teatro Kabuki. A única acepção
de haigô, por seu lado, é nome de
haicaísta.
Adotar um haigô é uma
atitude completamente opcional na vida
de um haicaísta e provavelmente não vai
melhorar ou piorar seus haicais. Já vi
as seguintes razões para não ter um
haigô, apresentadas por haicaístas que
assinam seus poemas apenas com o nome
real: 1- Nunca haver pensado no assunto;
2- Considerar falta de coragem não usar
o próprio nome; 3- Considerar fraude
assinar seu haicai com outro nome; 4-
Enxergar na adoção de um nome de
haicaísta uma manifestação de
narcisismo, ou seja, se achar muito
importante.
Sobre as razões para
adotar um haigô, encontrei o seguinte
texto:
“Quando proponho adotar
um haigô (nome de haicai), algumas
pessoas hesitam dizendo: ‘Ainda não é
hora, quero melhorar mais um pouco’.
Isso é um erro. Um haigô é diferente de
um nome atribuído ao discípulo pelo
mestre de Cerimônia do Chá ou Arranjo
Floral. É simplesmente um segundo nome
que você adota por vontade própria e não
tem a mesma natureza cerimoniosa de um
nome ‘outorgado pelo mestre’. Para quê
adotar um haigô? É para traçar uma linha
separando o mundo o haicai da realidade
da vida familiar e do trabalho. Não
importa o quão rico você seja ou quão
elevado o seu cargo na empresa. No mundo
do haicai, você é um haicaísta que se
alinha com outros haicaístas. Não é a
‘Madame Fulana’ ou o ‘Doutor Sicrano’. O
haigô corresponde a um sinal de que você
está em ‘outro mundo’. Acredito que,
quando adotamos um haigô, expressamos a
intenção de viver como haijins, livres
de todos os grilhões da sociedade”
(TSUJI, M; ABE, G. Ichi kara no haiku
nyumon. Tokyo, 2018, Shufu no Tomo. p.
180. Nossa tradução.).
Assim, um haigô tem
função diferente de um pseudônimo, pois
não é usado para esconder a identidade
real, mas para mostrar a devoção do
poeta ao mundo do haicai. Ao renunciar
temporariamente ao seu nome civil, o
haijin deixa o mundo real para vivenciar
a sublime esfera da poesia de haicai.
Depois de assinar seu trabalho, o haijin
retorna aos seus afazeres mundanos e ao
seu nome normal.
Não há regra para
escolher um haigô. Os japoneses escolhem
combinações interessantes de ideogramas,
nomes de plantas e animais de seus
gostos ou algo que queiram falar de si
mesmos. Sabemos que Bashô escolheu ser
chamado pelo nome de uma bananeira.
Buson quer dizer “aldeia dos nabos”.
Issa, “um chá”. Shiki significa “cuco”,
um pássaro que a lenda dizia
expelir sangue de tanto cantar, assim
como o próprio poeta, vítima da
tuberculose.
Taneda Santôka colheu seu
nome, “fogo na montanha”, do Calendário
Chinês, por achar interessante a
sonoridade. Seu mestre Ogiwara Seisensui
tirou do mesmo lugar o nome “água de
poço”. Nomes poéticos foram escolhidos
por Mizuhara Shûôshi, “aprendiz da flor
de cosmos” e Katô Shûson, “aldeia
outonal”. Outros preferiram ser
autodepreciativos e sarcásticos:
Nakamura Kusatao era o “homem podre” e
Sakata Dakotsu se identificou como “osso
de cobra”. Esses são nomes auto
atribuídos. Mas foi o mestre Shiki quem
sugeriu o haigô de seu discípulo
Takahama Kyoshi. Partindo de seu nome
real, Kiyoshi, escolheu uma combinação
de ideogramas que significava “aprendiz
da imaginação”, apontando para a difícil
missão de encontrar o tênue equilíbrio
entre realidade e ficção, característica
do seu haicai.
Muitas mulheres formavam
seus nomes de haicaísta acrescentando o
sufixo jo, que quer dizer “mulher”.
Temos Sugita Hisajo, cujo nome de
batismo era Hisa. Nakamura Teijo
emprestou da mãe o nome Tei e
acrescentou-lhe o sufixo. Hashimoto
Takako manteve o nome original, mas
Mutsuhashi Takajo, que também nasceu
Takako, trocou o sufixo de seu nome (ko
quer dizer filha).
Entre os haicaístas que
imigraram para o Brasil, temos Uetsuka
Hyôkotsu, pai da imigração japonesa,
cujo haigô significava “carcaça de
cabaça”. O engenheiro Kimura Keiseki era
a “pedra afiada”. O mais famoso de
todos, Satô Nempuku, sabia de
sua característica, talvez um defeito,
“pensar com as tripas” e não com a
cabeça, ou seja, ser apaixonado e
obstinado, pouco cerebral. Masuda Gôga
se via como o “Rio Ganges”, ao mesmo
tempo o mais sujo e o mais sagrado,
síntese de sua humanidade.
Foi explicado acima que
um haigô é normalmente auto atribuído.
Mas há exceções, como vimos no caso de
Kyoshi. Masuda Gôga escolheu a pedido os
nomes de alguns haijins. O saudoso
Douglas Eden pediu um haigô, sugerindo a
Gôga que traduzisse seu nome, Douglas,
cuja etimologia é “rio escuro”. O
mestre, sempre querendo o melhor para
seus alunos, inverteu a
solicitação, originando o nome Guin Ga,
que quer dizer “rio de prata”, isto é,
“Via Láctea”. Paulo Franchetti não
precisou pedir nada para Gôga, que lhe
atribuiu o nome “Ento”, ou seja, “cidade
das andorinhas”, epíteto de Campinas.
Celso Pestana postulou um gaiato “bafo
de onça”, mas o que conseguiu do mestre
foi um respeitoso Hyôkô, ou seja, “urro
de leopardo”. Outro nome atribuído a
pedido por Gôga foi Sennin, eremita da
mitologia chinesa com poderes mágicos e
que se esconde nas montanhas.
Alguns exemplos mais
recentes, provavelmente auto atribuídos:
Seishin, alcunha do monge carmelita
Antonio Fabiano, quer dizer “coração
puro”. Matsuki, identidade do paranaense
Sergio Pichorim, é “pinheiro” ou,
contextualizando melhor, “araucária”.
“Emi” é basicamente a tradução para o
japonês do prenome de Benedita Azevedo.
É necessário que o haigô
seja em japonês? Provavelmente não. Eu
gostaria de ver haicaístas alcunhados
Uirapuru ou Macaxeira. Na verdade, até
conheci uma idosa haicaísta cujo haigô
era Sabiá. Mas ela era japonesa e o nome
do pássaro declarava seu vínculo com o
país adotivo. Não é esse o caso dos
brasileiros que vão buscar a sua
identidade haicaísta. O japonês é o
latim do haicai, onde os aficionados vão
buscar paradigmas e inspiração. Se o
haigô é o portal para um parnaso onde
poetas se imaginam escrevendo ao lado de
Bashô e Issa, parece que a imersão nesse
mundo não será completa sem um nome
japonês. Além disso, um nome em japonês
(mais exato seria dizer sino-japonês) é
sintético e elegante, como vimos nos
exemplos acima: “Cidade das Andorinhas”
comprime-se em meras duas sílabas: “Ento”.
Com todos esses dados na
mesa, cabe a cada um decidir se quer
adotar um haigô. Cuidado com dicionários
online e outros atalhos. Se a opção for
por um nome japonês, isso deve ser feito
de forma segura, através de um professor
de língua japonesa de nível avançado,
selecionando a escrita correta e
eliminando combinações foneticamente
infames. É possível que muitas palavras
sejam possíveis de representar apenas
com a escrita silábica katakana, ao
invés dos vistosos ideogramas. O
haicaísta deve avaliar se isso o
satisfaz.
Por se tratar de uma
língua exótica, é importante dizer que
todo cuidado é pouco e o vexame ronda
quem comete erros. Vejam os casos das
tatuagens de ideogramas, em que o
tatuado pensa estar escrita uma palavra
e o desenho na pele indica um
significado diferente. Como dissemos
acima, um nome de haicaísta é
inteiramente opcional e não vai melhorar
a qualidade do haicai.
Abraços,
Edson Kenji Iura
kakinet@gmail.com
www.kakinet.com