Patrimonialismo: A PERVERSA TRADIÇÃO BRASILEIRA
- LUÍZA CAVALCANTE CARDOSO A PERVERSA TRADIÇÃO
BRASILEIRA
Segundo o Correio Braziliense de hoje, 30 de
março, o vice-presidente Hamilton Mourão, em
evento na Escola de Formação e Aperfeiçoamento
de Magistrados da Justiça Militar da União,
afirmou: “Um dos desafios (do governo) é a
hipertrofia do Congresso, que avançou sobre o
Executivo em uma questão que é nossa, que é o
Orçamento.” E explica que de um total de R $90
bilhões, R $36 bilhões “estão na mão do
Presidente da Câmara(Arthur Lira) e do
presidente do Senado (Rodrigo Pacheco). Temos
que acabar com isso, senão nosso sistema não
aguenta.” General Mourão se referia às famosas
emendas parlamentares, tornadas impositivas no
governo de Dilma Rousseff. Bem, esperamos que se
passar para o outro lado, vencendo a disputa por
uma cadeira no Senado, o general Mourão possa
lutar contra essa realidade.
No entanto, enquanto nosso vice-presidente
falava contra essa hipertrofia, parlamentares
tratavam de aprofundá-la. Protegendo as emendas
dos cortes necessários ao orçamento, por causa
da necessária contenção de gastos. E mais,
pasmem os senhores! O deputado Juscelino Filho,
relator do projeto, além de proteger as emendas
criou um dispositivo autorizando a destinação de
verbas parlamentares para estradas vicinais. As
que fazem a ligação entre rodovias federais,
municipais e estaduais. A reportagem em questão,
“O Orçamento secreto blindado”, lembra que a LDO
“proíbe a entrega de verbas para ações que não
sejam de competência da União.” As estradas
vicinais não são. No entanto, para a sede
patrimonialista do Congresso, obras que aparecem
próximas das comunidades rendem votos.Isso tem
um nome: patrimonialismo. Ninguém melhor do que
Lilia Moritz Schwarcz para defini-lo, em seu
livro “Sobre o autoritarismo brasileiro”. Ela
considera que dois são os principais inimigos da
nossa “frágil” República: o patrimonialismo e a
corrupção. Patrimonialismo é “quando o bem
público é apropriado privadamente. Quandose
acredita que o Estado é “um bem pessoal,
“patrimônio” de quem detém o poder”. Há poucos
dias uma parlamentar afirmava seu direito de
intervir no Orçamento, se apossando de recursos
para fins circunstanciais e pessoais, porque
fora eleita com os votos do povo. É disso que se
trata sua responsabilidade?
Uma mirada de olhos pelas atribuições do
poder Legislativo esclarece que o Art 44 dispõe
das atribuições de representação, legislativa e
de fiscalização. No Art 70 sobre a função
fiscalizadora são citadas a contábil,
financeira, orçamentária e patrimonial da União
e entidades de administração direta e indireta.
Ou seja, aparentemente, quanto ao Orçamento, a
função dos parlamentares é de correção e
fiscalização. Não a de se apossar, por
interesses pessoais, de recursos cujos fins
estão dissociados do planejamento geral para o
país, técnico e estratégico.Lilia Moritz
menciona as ideias do sociólogo alemão Max
Webber, que extrapolam o uso particular e
localizado do conceito de patrimonialismo. E o
remete “a uma forma de poder em que as
fronteiras entre as esferas públicas e privadas
se tornam tão nebulosas que acabam por se
confundir.” A autora fala de um problema grave,
tal qual a perda de racionalidade
do Estado, (ênfase minha) sempre que os
interesses privados se sobrepõem aos públicos e
se afirma o personalismo político. A meu ver,
não estão nebulosos hoje os limites entre as
esferas pública e privada. O que precisamos
questionar, e de certa forma é nebulosa, é a
falta de reação da sociedade organizada diante
desse descalabro. Não somente a estrutura infame
de privilégios e mordomias, tornando a classe
política e outras em verdadeira castas. Mas a
ilimitada expansão do poder e da desfaçatez de
se apoderarem dos recursos públicos para fins
privados.
Assim como as emendas parlamentares, que são
a posse de recursos do Orçamento Federal, para
despesas específicas em obras localizadas nos
redutos eleitorais dos parlamentares, onde se
encontram seus eleitores. São sua propaganda
gratuita com nossos impostos. Objeto de barganha
em todos os níveis. Excludentes, porque
favorecendo determinados grupos; paroquiais, em
relação aos objetivos estratégicos do Orçamento
Federal; injustas, porque avançando de roldão em
uma atribuição que é do Executivo. E,
historicamente, servindo ao enriquecimento
ilícito dos parlamentares e prefeitos, como
instrumento de corrupção, baseado principalmente
nos sobrepreços das obras.E mais, como explica
Sérgio Abranches em seu livro “Presidencialismo
de Coalizão” - a quantidade de recursos
colocados à disposição dos políticos, como os
Fundos Partidários e Eleitoral e o horário
gratuito, contribuem como já abordamos aqui,
para a desmobilização da vida política
substancialmente falando. Diz o autor: “O
desenvolvimento de mecanismos de recrutamento
direto, a mobilização e o envolvimento dos
partidos na comunidade se tornam desnecessários
ao sucesso político-eleitoral.” Os partidos
políticos viraram parasitas da nação.Vivemos em
uma República. Contudo, são os valores
republicanos que nos mobilizam? Como explica
José Murilo de Carvalho, citado por Lilia, não
pode haver República “sem o interesse pelo
coletivo, a virtude cívica e os princípios
próprios da vida pública.” Nos falta ainda, diz
a autora, “o exercício dos direitos sociais:
direito à saúde, à educação, ao emprego, à
moradia, ao transporte e ao lazer.”
Ou seja, enquanto se confirma o necessário
corte de despesas para o equilíbrio das contas
públicas, os parlamentares se debruçam no
Orçamento Federal para garantir, cada vez mais,
a posse ilimitada de recursos para fins
privados. A juventude que quer votar precisa
pensar nisso tudo. Nós mulheres, precisamos
ocupar um lugar de fala contra toda essa
injustiça. E de como todos os governos
mantiveram esse mecanismo de trocas e barganhas
com o Congresso. E se apossaram da res pública
como se privada fosse, enquanto o povo empobrece
e aumenta a desigualdade social. Nós nunca
vivemos em uma efetiva democracia. Nas próximas
eleições tentaremos algo novo, diferente, com
esperanças de mudar esse país? LUÍZA CAVALCANTE
CARDOSO <luizaccardoso@gmail.com>qua., 30 de
mar. de 2022 |