Theresa Catharina de Góes Campos
     
LUÍZA CAVALCANTE CARDOSO <luizaccardoso@gmail.com>
4 de jun. de 2022

A VIDA NA LAGOA

 
       Vocês podem não acreditar, mas na década de 50, no sítio arrendado por meu pai, na casa da beira da lagoa, a luz era a das lamparinas à querosene, a água era do riacho ao lado, límpida e sem cloro, trazida por latas para grandes recipientes de barro e, pasmem, não havia telefones. De nenhuma espécie. Dá para crer? O mais interessante, não sentíamos falta. Talvez um pouco mais de trabalho para quem cozinhava. Eu só sentia medo de cobra, porque não havia iluminação suficiente nos cômodos.

      Os caminhos dos sítios eram estreitos, feitos pelas passadas dos caminhantes. Não havia estrada para carros. O único transporte eram os pés, canoas a remo ou vela, a lancha grande de transporte uma vez ao dia. Ela parava nas pontes que havia em muitos sítios. No sábado ou domingo, não lembro, os sitiantes iam para a feira da Levada e o Mercado em Maceió. Levavam coisas para vender e compravam o básico. Voltando ao final do dia. Naquele tempo nenhuma lancha de ricaço passava por aquelas paragens, ainda desconhecidas para muitos. Quanto aos serviços oferecidos à comunidade, havia uma pequena escola, num raio de muitos quilômetros. E nenhum posto de saúde ou médico. Também nessa distância, somente uma bodega, pequena “venda”, com o essencial e pinga.  

      Os moradores viviam da roça, da pesca e de fazer carvão. No cardápio não havia pão, doces ou comida industrializada e, principalmente, não se comia carne vermelha, pois o preço era muito alto.  Eventualmente, a de galinha ou porco. Cardápio? Inhame, macaxeira, batata doce, arroz, feijão, farinha que eles mesmos produziam, beiju, tapioca, ovos e muito pescado: siri, camarão e peixe. Muito coco também: ralado, em forma de leite ou doce. Cozinhavam com banha de porco. Nada de agrotóxico ou qualquer elemento estranho para plantar. A terra era muito boa e eles tinham os adubos naturais.     A pesca era de anzol e rede para peixes; teteia e jereré para siris e camarão. Num samburá preto entrançado colocava-se o resultado da pescaria. Tudo fresco. Sem luz e sem dinheiro... sem geladeira! Pela manhã os homens subiam para a mata. Uns para fazer carvão, outros para cuidar da roça ou cortar madeiras. As mulheres limpavam a casa, sempre com a ajuda das filhas. E providenciavam a comida. Muitas, pescando na lagoa. Lembro a Valdó, mãe de minhas duas amigas de banho de lagoa, saindo para pescar o camarão de jereré. Uma peça enorme, formada de uma grande rede, presa a uma sustentação de metal, tendo por base uma madeira forte de quase dois metros. Pescar com ele significava enterrar a rede na lama da lagoa e empurrar por uns metros.  Levantando-o em seguida para retirar o que estava no fundo. Um trabalho que exigia muita força e era cansativo, porém de resultados mais rápidos.   O melhor de tudo era o camarão ensopado com leite de coco, produto da pescaria do dia e feito pela Valdó. Eu sempre filava essa comida, aceitando o convite para ficar e ignorando os gritos da empregada lá de casa, me chamando para almoçar. Na pequena mesa encostada na parede ficavam a Valdó e “seu” Júlio, o homem mais bonito que eu já vira. E olha que eu era fã dos faroestes americanos! Nós comíamos camarão com farinha e arroz de coco. Até hoje só gosto assim. E ficávamos as três sentadas no chão em cima de uma esteira, ao lado do cachorro da família. Inesquecível!

      Os pés, na vida dos sitiantes, era o transporte por excelência. Frequentemente, pés descalços. Alguns poucos tinham cavalos, para distâncias maiores, de muitas horas de viagem ou com muita bagagem para levar. O normal era caminhar para todo lugar e qualquer distância. Não me lembro de doença ser assunto para ninguém. E durante minha estadia no sítio, em uma comunidade com pessoas de várias idades, não recordo de um só enterro.  Não havia sobrepeso. Nem dentes com problemas. Ninguém falava em tristeza. Ansiedade ou medo. Não que fossem expansivos. Eram calmos. Sorriam quando queriam e acolhiam sempre. E só havia um alcoolista: o Sebastião. De pele clara, cabelo castanho desalinhado, desdentado na frente, roupas rasgadas, sem mulher ou filhos. Era o primo de todos. Morava em uma choupana de um cômodo só. No qual se isolava quando muito bêbado. No mais, era alegre e gentil.

    No sítio, fui levada para as mais ricas experiências da vida de uma criança: cortar madeira na mata com direito de se perder, pescar siri de andada, pescar siri de tetéia, pegar caranguejo na lama do manguezal, remar e tomar banho de lagoa, andar no mato e de canoa de noite, para ver as “baianas” na ilha de Santa Rita. Nessa última empreitada, nenhum familiar meu acompanhava. Em algumas outras atividades, mamãe se aventurava. No passeio para ver a dança das baianas eu ia com as famílias conhecidas, todos em fila indiana, porque o caminho era estreito. E o iluminavam com tochas de palha seca de coqueiro. A contarem casos e se divertirem durante todo o trajeto. Eu olhava o mato na noite meio escura, suspeitando de mistérios e criaturas estranhas. E na canoa, avançando pela lagoa prateada, com as margens cheias das silhuetas das plantas ao vento e fogo fátuo, tudo cheirava a magia.

       Creio que o pessoal sabia o que esperar de mim: eu gostava daquela vida. E acho que até me observavam e protegiam quando me viam sozinha, ainda criança, nas minhas caminhadas pelo mato com meu cachorro. Ou quando saía remando na canoa ao final do dia. Creio que, para eles, eu não parecia uma pessoa “da cidade”. E se eu acreditasse em reencarnação, certamente teria vivido ali em algum momento. Então, eu era convidada e acompanhava a Valdó e minhas duas amigas para tudo.

     Havia uma circunstância interessante na vida desses sitiantes: todos os moradores eram iguais em posses, todos donos de seus sítios, herdeiros de seus antepassados. Não havia conflitos com os limites das terras. Cada sítio com poucas casas, às vezes somente com uma, em grande extensão de terra. Com privacidade e, ao mesmo tempo, união e certeza do apoio de todos. Aqui e ali uma casa de tijolo coberta de telhas. Havia muitas de barro colocado em armações de ripas de madeira, entrançadas.  O teto de palha de coqueiro. O piso de barro batido. Duas salas, um ou dois quartos. Em lugar de camas às vezes havia uma enxerga, feita com ripas e colchão de palha seca. Do lado de fora um pequeno avançado com um jirau, no qual pousava uma gamela grande para lavar louças e panelas. Pequenas latas viravam copos brilhantes, de tão areados com sabão em barra e talvez um pouco de areia. Tudo muito limpo. Não havia bom bril.

     Água de beber era a do córrego, coletada em determinados lugares e colocada em moringas ou potes de barro com uma concha. Esse córrego nascia em uma profunda cratera, aberta depois de uma inundação e toda de giz de várias cores. Linda! E o nome do sítio, não sei bem por que, era Buraco do Priquito. Já o encontramos assim. Mas o chamávamos simplesmente de Sítio do Buraco. Tempos depois, ele foi vendido por um preço que papai não poderia pagar. Passados muitos anos, construíram uma ponte enorme sobre ele. E tudo mudou. Eu não o reconhecia mais. Ainda visitava o pessoal.

     Era um modo de viver completamente natural. O banho era na malheira, o córrego de águas límpidas que passava pelos sítios. Cheio de peixinhos nadando, fundo de areia clara e pedrinhas redondas. Encontrava-se uma agulha, tal a limpidez. Os moradores cercavam um lugar perto das casas, com paredes de armação de palhas de coqueiro. E quando tinha porta, era também feita de palha, sem tranca. Um pequeno corredor de entrada, para não dar a visão direta dos banhistas. E ninguém arriscava entrar, sem antes perguntar se tinha alguém. Nada de toalhas para se enxugar. Depois do banho, a roupa colava nos corpos, e logo depois estava tudo enxuto. Os dentes, sempre muito brancos, eram rigorosamente limpos, esfregados com as folhas de uma planta cultivada nos pés da casa. Os WC eram bem perto de casa, com uma fossa. Não me lembro de vaso sanitário.

     Somente meu pai, num momento de pouca lucidez, inventou de fazer o nosso afastado da casa, todo de madeira, montado no alto, com enormes pés de sustentação. E em 
cima justamente do córrego que dava para a lagoa onde tomávamos banho. Os peixinhos adoraram. À noite os velhos penicos resolviam o resto da questão. Eu era criança e desse trabalho pesado nem tomava conhecimento. Uma das boas coisas de ser criança.

 
    No mais, todo o espaço dos sítios era tomado por grandes árvores: mangueiras, jaqueiras, cajueiros, e muitas mais que eu não conhecia. Grandes troncos e ramagens enormes, debruçadas sobre o caminho de terra, com suas frutas e sombra protetora. E as plantações de cana caiana de puro açúcar. Os coqueiros altíssimos, cujos troncos muito altos e finos, balançavam perigosamente e nunca vergavam com a força do vento. Como seres da realeza, a fiscalizarem do alto a sua corte. E cujos frutos eram uma delícia! Depois vinham as árvores de tamanho médio com seus galhos delicados. E, por fim, o capim e as pequenas e delicadas figuras, ao rés do chão, incluindo a temperamental urtiga, que se contraía toda ao menor toque.

     No chão de terra os camaleões, as lagartixas e as cobras, que nunca eram vistos com frequência. Desses bichos a gente só via o barulho rápido de seu movimento, o mato abrindo passagem para sua fuga com a nossa aproximação. Em cima, um céu sempre azul com nuvens brincando de passear; ao redor a brisa murmurando docemente. Ou, em determinadas horas, o vento cortante e ameaçador, cuja força balançava forte os galhos das árvores e as águas das marés.

       E, por fim, emoldurando tudo, impondo seus limites, trazendo suas riquezas - a lagoa. Que, ao final, era um rio. Nunca chamado pelo nome e ligando as duas grandes lagoas, Mundaú e Manguaba. Uma na cidade de Maceió, também chamada: “O paraíso das águas”. Outra, em Marechal Deodoro. Rio de águas que passavam sem nunca parar, com suas cores verdes durante o dia ou raios prateados à noite, sob o olhar da lua. E em cuja superfície andavam as canoas dos pescadores, compridas e estreitas, movidas com grandes remos ou grandes velas. Quando corriam com a velocidade do vento. E as grandes barcaças de coco, que passavam à noite com suas lamparinas nas popas, suas velas e o canto dos barqueiros.    Quando chegávamos para as férias ou os feriados, todas as noites alguns moradores dos sítios mais próximos saíam de suas casas, com lamparinas iluminando o caminho, e vinham para a nossa na beira da lagoa. Gostavam de se sentar na calçada. As mulheres e moças com seus vestidos de chita, sempre estampados, em sua grande maioria de pequenas estampas e cores claras, decote discreto e com mangas. Os homens de calça comprida de sarja e camisa de algodão. 

      Chegavam se anunciando: “Seu Cardoso!” Era meu pai. Meu avô já apanhara os galhos para acender a fogueira espantadora de mosquitos. A casa toda fechada desde as 17 horas para impedi-los de entrar. Não usávamos repelente. O grupo formado, conversávamos durante horas na varanda. Meus pais, meus avós e eu adorávamos! Na verdade, eu e minha avó quedávamos silenciosas. Uma ou outra vez eu fazia perguntas, para esclarecer alguma coisa das histórias.

      A varanda emoldurada pela sombra dos coqueiros, o barulho do córrego desembocando na lagoa, a lua nos espreitando lá de cima e prateando as águas levadas pela força das marés em seu constante movimento, o sussurro das marolas chegando perto da casa.  E nós, seres humanos que se aconchegavam para uma boa conversa, vivendo aquele resto do dia a partilhar experiências, rindo de nossas fraquezas no meio daquela beleza toda, na plenitude de momentos nos quais a vida valia a pena.

        LUÍZA CAVALCANTE CARDOSO   
 
Jornalismo com ética e solidariedade.