A VIDA NA LAGOA
Vocês podem não
acreditar, mas na década de 50, no sítio arrendado por meu pai, na casa da beira da lagoa,
a luz era a das lamparinas à querosene, a água era do riacho ao lado, límpida e
sem cloro, trazida por latas para grandes recipientes de barro e, pasmem, não havia
telefones. De nenhuma espécie. Dá para crer? O mais interessante, não sentíamos
falta. Talvez um pouco mais de trabalho para quem cozinhava. Eu só sentia
medo de cobra, porque não havia iluminação suficiente nos cômodos.
Os caminhos dos sítios
eram estreitos, feitos pelas passadas dos caminhantes. Não havia estrada para
carros. O único transporte eram os pés, canoas a remo ou vela, a lancha grande de
transporte uma vez ao dia. Ela parava nas pontes que havia em muitos sítios.
No sábado ou domingo, não lembro, os sitiantes iam para a feira da Levada
e o Mercado em Maceió. Levavam coisas para vender e compravam o básico.
Voltando ao final do dia. Naquele tempo nenhuma lancha de ricaço passava por
aquelas paragens, ainda desconhecidas para muitos. Quanto aos serviços
oferecidos à comunidade, havia uma pequena escola, num raio de muitos quilômetros.
E nenhum posto de saúde ou médico. Também nessa distância, somente uma
bodega, pequena “venda”, com o essencial e pinga.
Os moradores viviam da
roça, da pesca e de fazer carvão. No cardápio não havia pão, doces ou
comida industrializada e, principalmente, não se comia carne vermelha, pois o
preço era muito alto. Eventualmente, a de galinha ou porco. Cardápio? Inhame,
macaxeira, batata doce, arroz, feijão, farinha que eles mesmos produziam, beiju,
tapioca, ovos e muito pescado: siri, camarão e peixe. Muito coco também: ralado,
em forma de leite ou doce. Cozinhavam com banha de porco. Nada de
agrotóxico ou qualquer elemento estranho para plantar. A terra era muito boa e
eles tinham os adubos naturais. A pesca era de anzol e
rede para peixes; teteia e jereré para siris e camarão. Num samburá preto
entrançado colocava-se o resultado da pescaria. Tudo fresco. Sem luz e sem dinheiro...
sem geladeira! Pela manhã os homens subiam para a mata. Uns para fazer carvão,
outros para cuidar da roça ou cortar madeiras. As mulheres limpavam a casa, sempre com
a ajuda das filhas. E providenciavam a comida. Muitas, pescando na lagoa. Lembro a
Valdó, mãe de minhas duas amigas de banho de lagoa, saindo para pescar o
camarão de jereré. Uma peça enorme, formada de uma grande rede, presa a uma
sustentação de metal, tendo por base uma madeira forte de quase dois metros. Pescar com ele
significava enterrar a rede na lama da lagoa e empurrar por uns metros.
Levantando-o em seguida para retirar o que estava no fundo. Um trabalho que exigia muita
força e era cansativo, porém de resultados mais rápidos. O melhor de tudo era o
camarão ensopado com leite de coco, produto da pescaria do dia e feito pela Valdó.
Eu sempre filava essa comida, aceitando o convite para ficar e ignorando os gritos
da empregada lá de casa, me chamando para almoçar. Na pequena mesa encostada
na parede ficavam a Valdó e “seu” Júlio, o homem mais bonito que eu já vira.
E olha que eu era fã dos faroestes americanos! Nós comíamos camarão com
farinha e arroz de coco. Até hoje só gosto assim. E ficávamos as três
sentadas no chão em cima de uma esteira, ao lado do cachorro da família. Inesquecível!
Os pés, na vida dos
sitiantes, era o transporte por excelência. Frequentemente, pés descalços. Alguns
poucos tinham cavalos, para distâncias maiores, de muitas horas de viagem ou com
muita bagagem para levar. O normal era caminhar para todo lugar e qualquer
distância. Não me lembro de doença ser assunto para ninguém. E durante minha
estadia no sítio, em uma comunidade com pessoas de várias idades, não recordo
de um só enterro. Não havia sobrepeso. Nem dentes com problemas. Ninguém
falava em tristeza. Ansiedade ou medo. Não que fossem expansivos. Eram
calmos. Sorriam quando queriam e acolhiam sempre. E só havia um
alcoolista: o Sebastião. De pele clara, cabelo castanho desalinhado, desdentado na
frente, roupas rasgadas, sem mulher ou filhos. Era o primo de todos.
Morava em uma choupana de um cômodo só. No qual se isolava quando muito
bêbado. No mais, era alegre e gentil.
No sítio, fui levada
para as mais ricas experiências da vida de uma criança: cortar madeira na mata com
direito de se perder, pescar siri de andada, pescar siri de tetéia, pegar
caranguejo na lama do manguezal, remar e tomar banho de lagoa, andar no mato e
de canoa de noite, para ver as “baianas” na ilha de Santa Rita. Nessa última
empreitada, nenhum familiar meu acompanhava. Em algumas outras
atividades, mamãe se aventurava. No passeio para ver a dança das baianas eu ia com
as famílias conhecidas, todos em fila indiana, porque o caminho era
estreito. E o iluminavam com tochas de palha seca de coqueiro. A contarem
casos e se divertirem durante todo o trajeto. Eu olhava o mato na noite meio
escura, suspeitando de mistérios e criaturas estranhas. E na canoa,
avançando pela lagoa prateada, com as margens cheias das silhuetas das
plantas ao vento e fogo fátuo, tudo cheirava a magia.
Creio que o pessoal
sabia o que esperar de mim: eu gostava daquela vida. E acho que até me
observavam e protegiam quando me viam sozinha, ainda criança, nas minhas
caminhadas pelo mato com meu cachorro. Ou quando saía remando na canoa ao
final do dia. Creio que, para eles, eu não parecia uma pessoa “da
cidade”. E se eu acreditasse em reencarnação, certamente teria vivido ali
em algum momento. Então, eu era convidada e acompanhava a Valdó e
minhas duas amigas para tudo.
Havia uma circunstância
interessante na vida desses sitiantes: todos os moradores eram iguais em posses,
todos donos de seus sítios, herdeiros de seus antepassados. Não havia conflitos com os
limites das terras. Cada sítio com poucas casas, às vezes somente com uma, em grande
extensão de terra. Com privacidade e, ao mesmo tempo, união e certeza do
apoio de todos. Aqui e ali uma casa de tijolo coberta de telhas. Havia muitas de
barro colocado em armações de ripas de madeira, entrançadas. O teto de
palha de coqueiro. O piso de barro batido. Duas salas, um ou dois quartos. Em lugar
de camas às vezes havia uma enxerga, feita com ripas e colchão de palha seca. Do
lado de fora um pequeno avançado com um jirau, no qual pousava uma gamela
grande para lavar louças e panelas. Pequenas latas viravam copos brilhantes,
de tão areados com sabão em barra e talvez um pouco de areia. Tudo muito limpo.
Não havia bom bril.
Água de beber era a do
córrego, coletada em determinados lugares e colocada em moringas ou potes de
barro com uma concha. Esse córrego nascia em uma profunda cratera, aberta
depois de uma inundação e toda de giz de várias cores. Linda! E o nome do sítio,
não sei bem por que, era Buraco do Priquito. Já o encontramos assim. Mas
o chamávamos simplesmente de Sítio do Buraco. Tempos depois, ele foi
vendido por um preço que papai não poderia pagar. Passados muitos anos,
construíram uma ponte enorme sobre ele. E tudo mudou. Eu não o reconhecia mais.
Ainda visitava o pessoal.
Era um modo de viver
completamente natural. O banho era na malheira, o córrego de águas límpidas
que passava pelos sítios. Cheio de peixinhos nadando, fundo de areia clara e
pedrinhas redondas. Encontrava-se uma agulha, tal a limpidez. Os moradores cercavam um
lugar perto das casas, com paredes de armação de palhas de coqueiro. E quando tinha
porta, era também feita de palha, sem tranca. Um pequeno corredor de entrada, para
não dar a visão direta dos banhistas. E ninguém arriscava entrar, sem antes perguntar
se tinha alguém. Nada de toalhas para se enxugar. Depois do banho, a roupa colava
nos corpos, e logo depois estava tudo enxuto. Os dentes, sempre muito brancos, eram
rigorosamente limpos, esfregados com as folhas de uma planta cultivada nos pés da
casa. Os WC eram bem perto de casa, com uma fossa. Não me lembro de vaso
sanitário.
Somente meu pai, num
momento de pouca lucidez, inventou de fazer o nosso afastado da casa, todo de madeira,
montado no alto, com enormes pés de sustentação. E em cima justamente do córrego que dava para a lagoa
onde tomávamos banho. Os peixinhos adoraram. À noite os velhos penicos resolviam
o resto da questão. Eu era criança e desse trabalho pesado nem tomava
conhecimento. Uma das boas coisas de ser criança.
No mais, todo o espaço
dos sítios era tomado por grandes árvores: mangueiras, jaqueiras, cajueiros, e
muitas mais que eu não conhecia. Grandes troncos e ramagens enormes, debruçadas sobre o
caminho de terra, com suas frutas e sombra protetora. E as plantações
de cana caiana de puro açúcar. Os coqueiros altíssimos, cujos troncos muito altos e
finos, balançavam perigosamente e nunca vergavam com a força do vento. Como
seres da realeza, a fiscalizarem do alto a sua corte. E cujos frutos eram uma delícia!
Depois vinham as árvores de tamanho médio com seus galhos delicados. E, por
fim, o capim e as pequenas e delicadas figuras, ao rés do chão, incluindo a
temperamental urtiga, que se contraía toda ao menor toque.
No chão de terra os
camaleões, as lagartixas e as cobras, que nunca eram vistos com frequência. Desses
bichos a gente só via o barulho rápido de seu movimento, o mato abrindo passagem
para sua fuga com a nossa aproximação. Em cima, um céu sempre azul com
nuvens brincando de passear; ao redor a brisa murmurando docemente. Ou,
em determinadas horas, o vento cortante e ameaçador, cuja força balançava forte
os galhos das árvores e as águas das marés.
E, por fim,
emoldurando tudo, impondo seus limites, trazendo suas riquezas - a lagoa. Que, ao final, era
um rio. Nunca chamado pelo nome e ligando as duas grandes lagoas, Mundaú e
Manguaba. Uma na cidade de Maceió, também chamada: “O paraíso das águas”.
Outra, em Marechal Deodoro. Rio de águas que passavam sem nunca parar, com suas
cores verdes durante o dia ou raios prateados à noite, sob o olhar da lua. E em
cuja superfície andavam as canoas dos pescadores, compridas e estreitas,
movidas com grandes remos ou grandes velas. Quando corriam com a velocidade do
vento. E as grandes barcaças de coco, que passavam à noite com suas lamparinas
nas popas, suas velas e o canto dos barqueiros. Quando chegávamos para
as férias ou os feriados, todas as noites alguns moradores dos sítios mais
próximos saíam de suas casas, com lamparinas iluminando o caminho, e
vinham para a nossa na beira da lagoa. Gostavam de se sentar na calçada. As
mulheres e moças com seus vestidos de chita, sempre estampados, em sua grande
maioria de pequenas estampas e cores claras, decote discreto e com
mangas. Os homens de calça comprida de sarja e camisa de algodão.
Chegavam se
anunciando: “Seu Cardoso!” Era meu pai. Meu avô já apanhara os galhos para acender a
fogueira espantadora de mosquitos. A casa toda fechada desde as 17 horas
para impedi-los de entrar. Não usávamos repelente. O grupo formado,
conversávamos durante horas na varanda. Meus pais, meus avós e eu adorávamos! Na
verdade, eu e minha avó quedávamos silenciosas. Uma ou outra vez eu fazia
perguntas, para esclarecer alguma coisa das histórias.
A varanda emoldurada
pela sombra dos coqueiros, o barulho do córrego desembocando na lagoa, a
lua nos espreitando lá de cima e prateando as águas levadas pela força das
marés em seu constante movimento, o sussurro das marolas chegando perto da casa. E
nós, seres humanos que se aconchegavam para uma boa conversa, vivendo
aquele resto do dia a partilhar experiências, rindo de nossas fraquezas no meio
daquela beleza toda, na plenitude de momentos nos quais a vida valia a pena.
LUÍZA CAVALCANTE
CARDOSO
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