CONSTITUIÇÃO EM FRANGALHOS Revista Oeste
Não há
como haver democracia e, ao mesmo tempo, um
supremo tribunal que pratica a ilegalidade o
tempo todo
J. R. Guzzo
“A democracia do Brasil está sendo destruída
na frente de todo o mundo, praticamente todos os
dias, pelas decisões dos ministros do Supremo
Tribunal Federal. Não há nada oculto, nem
sujeito à dúvida, naquilo que fazem: estão
criando, peça por peça, um país fora da lei, no
qual a Constituição Federal e o restante da
legislação em vigor não valem mais nada, os
direitos individuais foram suprimidos e o
resultado das eleições pode ser montado numa
sala secreta do “TSE”, o braço eleitoral do STF.
Qualquer cidadão brasileiro pode ser preso,
obrigado a usar tornozeleira e punido com multas
extravagantes e ilegais. Está sendo tocado no
degrau mais alto da justiça um inquérito
policial proibido por todas as leis — nunca foi
feito, em toda a história do Brasil, nada de
parecido. Partidos políticos são proibidos de
operar por decisão individual de um ministro —
que, naturalmente, conta com o apoio da maioria
dos colegas em qualquer decreto que assine, por
mais demente que possa ser. Há violação aberta
ao direito de livre expressão; não é permitido,
simplesmente, dizer o que os ministros não
querem que seja dito nas redes sociais. Há
ameaça pública, por parte do STF e do TSE, de
cassar candidaturas à próxima eleição — uma
intervenção no processo eleitoral que jamais se
viu desde que o Brasil retornou oficialmente ao
Estado de direito.
O Congresso Nacional é cúmplice do Estado
fora da lei que o Supremo criou no Brasil
É uma ditadura em construção. Um decreto
perfeitamente legal do presidente da República,
anulando uma condenação do STF, é ignorado pelo
ministro Alexandre de Moraes, o autor da
sentença; ele continua socando punições em cima
do indivíduo que persegue, e a maioria dos seus
companheiros de plenário apoia este ato de
desordem aberta. A imunidade dos parlamentares,
que segundo a lei não podem ser punidos por
“quaisquer opiniões” que derem em público, foi
grosseiramente desrespeitada pelo tribunal — um
deputado federal em pleno exercício do mandato,
esse mesmo que o presidente perdoou, foi preso
por nove meses, condenado a quase nove anos de
prisão e enfrenta multas que podem chegar a R$
1,5 milhão, pelo único e exclusivo fato de ter
feito “ataques” verbais ao STF. Suas contas
bancárias foram bloqueadas, inclusive a que paga
os seus vencimentos como deputado— e bloquear
salário, qualquer salário e por qualquer motivo,
é proibido de maneira absoluta por todas as leis
do país. O ministro que persegue o deputado
bloqueou, também, as contas de sua mulher. É
algo nunca visto no Direito. A mulher do
deputado não é acusada de crime nenhum, não faz
parte do processo e, se tiver alguma coisa a ver
com a história, a violência fica ainda mais
absurda — ela integra a equipe de advogados do
réu, e nenhum deles jamais poderia ser atingido
por qualquer punição de quem está julgando o
caso no qual advogam. (Imagine-se um pouco o que
aconteceria se bloqueassem a conta bancária de
um advogado de Lula, durante suas desventuras
com a justiça penal brasileira. O mundo acabaria
na hora.) O STF apoia essa aberração, como apoia
toda a conduta delinquente do colega.
Vive-se num regime de histeria. O dirigente
de um partido político sem expressão — não tem
nenhum deputado federal, nem estadual —, mas que
opera inteiramente dentro da lei, chamou um
ministro Moraes de “careca”; o partido todo, no
ato, foi praticamente proibido de continuar
exercendo as suas atividades, por decisão
pessoal do ministro que se sentiu ofendido. É
verdade que o dirigente usou a palavra skinhead
para dizer “careca”, e esse termo, no inglês,
serve para designar militantes nazistas. Mas
qual poderia ter sido o seu crime? Careca o
ministro indiscutivelmente é — não dá, então,
para dizer que o punido espalhou notícia falsa,
ou fake news, na linguagem oficial do Supremo. E
achar que ele é nazista? Aí já é uma questão de
ponto de vista — mas expressar pontos de vista é
um direito assegurado pela liberdade
constitucional de expressão. Houve abuso ou
crime no exercício desta liberdade por parte do
líder partidário? Então a única resposta legal
teria sido processar o homem por calúnia,
injúria ou difamação, pedir retratação ou cobrar
alguma indenização por dano moral — como, aliás,
teria de ter sido feito no caso do deputado que
tanto assombra o STF. O fato é que no Brasil de
hoje a vingança passou a ser abertamente
admitida como função judicial. Os ministros, e
particularmente o que foi chamado de “careca”,
deram a si próprios o poder e o direito de punir
quem quer que seja quando se sentem pessoalmente
atingidos, por qualquer coisa que seja. Para
tanto, quando se dão o trabalho de explicar
alguma de suas atitudes, inventaram a espantosa
teoria pela qual cada metro quadrado do
território nacional, do Oiapoque ao Chuí, é uma
extensão física do prédio-sede do STF e,
portanto, está sujeito às mesmas regras de
segurança em vigor ali. Quer dizer, o infeliz
fala alguma coisa em São Benedito do Fim do
Mundo — e é como se estivesse dentro da sala da
ministra Cármen Lúcia, com uma granada na mão.
Da mesma maneira, a pessoa de cada ministro é
considerada como se fosse o próprio STF, e
qualquer coisa que se diga contra eles é
considerada um “ataque à instituição” e uma
ameaça à sua sobrevivência. Como assim? É
demente. O tribunal, pela última conta, gastou
R$ 80 milhões nos últimos quatro anos com a
segurança pessoal dos ministros e funcionários:
carros blindados, escolta armada, o diabo. Como
o sujeito, enfiado numa casamata dessas, pode se
sentir “ameaçado” por ser chamado de careca?
Supõe-se que um alto funcionário do Estado
deveria se obrigar a um mínimo de coragem
pessoal para exercer as suas funções, não é
mesmo? É muito justo que ele tenha toda a
segurança física — mas, com essa segurança toda,
por que a excitação nervosa fora de controle
quando alguém diz a mínima coisinha? Não faz
sentido nenhum.
Os ministros do STF violam diretamente a
democracia brasileira porque nenhum dos seus
atos, por mais ilegais que sejam, é contestado
por quem quer que seja. Na verdade, o que
acontece é o contrário. O Congresso Nacional é
cúmplice do Estado fora da lei que o Supremo
criou no Brasil — para começo de conversa,
aceitou, num caso único no mundo, que o
princípio constitucional da imunidade
parlamentar fosse jogado na lata do lixo pelo
STF. No Senado, que tem o dever legal de
fiscalizar o tribunal, a situação é de parceria
declarada com a ilegalidade — seu presidente, um
dos maiores bananas que jamais passou pelo Poder
Legislativo brasileiro, opera como um servente
explícito dos ministros. A mídia, em sua quase
totalidade, é fanaticamente a favor de tudo o
que o STF decide. As elites econômicas e
culturais, a esquerda em peso e toda a
militância das ”pautas progressistas” também dão
apoio integral ao tribunal. Não é nenhuma
surpresa, naturalmente, a aberração que coroa
todas essas aberrações: a suprema corte do
Brasil, um grupo de ativistas onde sete dos 11
ministros foram nomeados nos governos
Lula-Dilma, e dois outros são inimigos radicais
do governo, age como um partido político de
oposição e tem um candidato quase oficial à
presidência da República — ou seja, é a própria
negação da democracia. A mídia, as classes
intelectuais e a “comunidade internacional”
fingem fervorosamente que essa realidade não
existe.
A respeito da candidatura Lula, porém, o STF
tem um problema sem solução, hoje ou em qualquer
época futura: o chefe do PT é candidato à
presidência da República porque um dos
ministros, com o pleno apoio dos colegas, tomou
em seu favor a decisão mais delirante de toda a
história jurídica do Brasil. Como apagar esse
ato de militância política escandalosa? O
ministro anulou, sem qualquer fundamento que
tivesse um mínimo de decência, os quatro
processos penais existentes contra Lula,
inclusive sua condenação pelos crimes de
corrupção e lavagem de dinheiro, em três
instâncias e por nove magistrados diferentes — o
juiz que deu a sentença original, os três
desembargadores que a examinaram e os cinco
ministros do Superior Tribunal de Justiça que
fizeram a revisão final do caso. Sem essa
anulação, Lula simplesmente não poderia ser
candidato, por força da Lei da Ficha Limpa — ou
seja, sua candidatura é resultado direto da
decisão do STF. É bem sabido o disparate
utilizado para anular a condenação: Lula teria
sido julgado num foro sem “competência legal”
para julgá-lo. Não faz o menor nexo. Qualquer
advogado de porta de cadeia sabe que a primeira
coisa a ver num processo, qualquer processo, é
se o foro é competente ou não é; se não é, a
coisa nem começa. Como, então, a ação penal que
condenou Lula passou por nove juízes e ninguém,
ao longo de cinco anos, percebeu nada de errado
com o foro? Só o ministro Edson Fachin descobriu
— bem na hora em que Lula queria se candidatar a
presidente? É uma alucinação. A partir dela,
tudo o que o STF decide fica contaminado.
É o mesmo processo de degeneração que está
acontecendo com o inquérito policial aberto três
anos atrás no STF — o “inquérito para apurar
fake news e atos antidemocráticos”. Esse
inquérito é ilegal: por uma maneira muito
simples de dizer as coisas, ele nunca poderia
ter sido aberto, pois a lei brasileira, também
de uma maneira muito simples, não permite que o
STF abra um inquérito criminal. Muito menos,
aliás, quando ele próprio se apresenta como
vítima, investigador de polícia, promotor de
acusação e juiz final do caso, tudo ao mesmo
tempo. A partir desse fato, nada mais fica
certo. É a doutrina jurídica da “árvore
envenenada”, muito aceita no Direito dos Estados
Unidos. Se uma árvore está envenenada, diz a
teoria, todos os seus frutos terão veneno; se um
ato judiciário é ilegal, todos os atos derivados
dele serão ilegais. O inquérito das fake news é
um clássico em matéria de árvore envenenada. Sua
criação desrespeita a lei, e ponto final —
depois desse pecado original, nada do que sair
dele é legal, nem tem qualquer valor jurídico.
Daí por diante, como no tango de Gardel, é
Cuesta Abajo; só tristeza, com um erro dando
origem automática a outro erro, um despropósito
gerando outro despropósito, e assim por diante,
ladeira abaixo e cada vez pior. Não poderia
haver inquérito nenhum; a partir dessa
insensatez, o STF foi criando a prisão de um
deputado federal no desfrute das suas imunidades
como homem público eleito pelo povo; o
“flagrante perpétuo”; as agressões à liberdade
de expressão; a criação de presos políticos e de
pelo menos um exilado; a criminalização da
“notícia falsa”, ou desinformação, um crime que
não existe nos 361 artigos do Código Penal
Brasileiro; a imobilização de um partido que tem
o direito de existir; o bloqueio da conta
bancária da mulher do deputado punido; as
ameaças de anulação de candidaturas — na
verdade, anulação de candidaturas “de direita”,
a começar pela do presidente; e daí em frente,
rumo ao infinito.
Esse desrespeito continuado à lei desmonta a
democracia brasileira; não há como haver
democracia e, ao mesmo tempo, um supremo
tribunal de justiça que pratica a ilegalidade o
tempo todo. Também não há como fazer isso sem a
aceitação das forças que dizem representar a
“sociedade civil”. Essa aceitação se traduz em
incentivo, daí se passa à cumplicidade e, no
fim, à coautoria. É onde estamos.” |