“BATENDO PERNAS DENTRO DE MIM” Somente uma
alma profundamente lírica, encantadora e
encantada da vida é capaz de caracterizar o
tempo de pandemia assim: “ Estou batendo pernas
dentro de mim mesmo, conversando com os próprios
botões e dando volta nos quarteirões de minha
alma”. Assim falou o ex Ministro Ayres Britto. O
poeta me deixou sem fôlego.O que estamos fazendo
nesta pandemia? Esmiuçando os labirintos de nós
mesmos? Observando a intimidade da alma.
Entremeando atalhos, brechas, abismos,
planícies. Descobrindo coisas. Principalmente as
que surpreendem e desnorteiam. As imprevisíveis.
Talvez as que deixem maior a distância entre
imagem e realidade. E nos fazem sofrer,
despertando culpas.Espreitar a planície que se
desdobra ao longo da vida e o pedaço que resta.
Espiar, vigiar o tempo. Mesmo na pandemia ele
não parece parar. Embora, em certos momentos,
nos pareça o contrário. Nós o vigiamos ou ele
nos vigia? Quanto nos faltará? Além do caminho
já visto? As coisas que nos constituíram, as
circunstâncias que formaram a nossa identidade,
as marcas que deixamos por tudo quanto
conseguimos realizar. Para melhor? Ou não?
Ah! Esses caminhos desconhecidos! Essas
voltas do poeta em torno de sua alma! Quem dera
as minhas prenunciassem cores vivas de um bom
futuro. Como as lembranças da pescaria de siri
mole caminhando à noite na lagoa, iluminada pelo
fogo dos fachos de palha seca. Ou a paisagem de
uma canoa que desliza suavemente por entre as
margens, ao cair da tarde. Remar contemplando
cada curva do caminho. A do mangue sempre verde
onde os caranguejos azuis correm para seus
buracos na lama, ao menor ruído ou movimento. Os
coqueiros debruçados sob o vento, suas folhas
gemendo baixinho, seus troncos tão altos e
esbeltos que parece um milagre se manterem de
pé. Um pedaço de chão com sua pequena casa de
palha, um banco rústico embaixo da janela e uma
canoa amarrada a um pedaço de madeira, para não
se soltar com a correnteza.
LUÍZA CAVALCANTE CARDOSO
<luizaccardoso@gmail.com>
Date: sáb., 2 de jul. de 2022 |