No dia 19 de janeiro, o Congresso tomou
conta das primeiras páginas dos jornais,
desta vez de forma positiva. O
Correio Braziliense deu como
manchete: “E no esforço para melhorar
imagem, deputados decidem... Em vez de
90, terão férias de 55 dias. A cada
início de ano, receberão jeton de R$12,8
mil”. O jornal dedicou o editorial do
dia ao assunto, e uma grande matéria na
nobre página 3, além de notas em
colunas. A Folha de São Paulo
também deu espaço ao assunto:
manchetinha, matéria, notas e um
editorial. Espaço semelhante foi dado
nos outros grandes jornais brasileiros.
Realmente foi fato raro. Depois de ter a
imagem desgastada pelo mensalão, pelo
mensalinho, por uma CPI que apresentou o
relatório final um dia após o prazo,
pela absolvição política de um réu
confesso e pelo plenário vazio em época
de convocação extraordinária, deputados
resolveram votar contra seus próprios
interesses. E poucas vezes na história
da Câmara houve tanto consenso em
relação a uma proposta de emenda
constitucional: foram 466 votos a favor
da PEC e apenas um contra. A revista
Veja destacou que a “reação da
opinião pública força deputados a acabar
com salários adicionais e diminuir
férias”.
Nesse fato, cabe destacar a força da
imprensa: depois dos jornais começarem a
anunciar que alguns poucos deputados
haviam devolvido o salário extra
recebido pela convocação extraordinária,
os demais começaram a imitar o gesto só
para também garantir espaço nos
noticiários. É o que se chama, na
psicologia comportamental, de reforço
positivo: os que devolvem o salário
ganham o prêmio de aparecer bem na foto,
durante alguns segundos, para os
eleitores. Até o dia da aprovação da PEC,
92 deputados (18% do total) já haviam
anunciado a devolução. Com certeza, um
fato nobre. Mas não podemos deixar de
enxergar também que a devolução
tornou-se espetáculo, encenação para
eleitor ver em ano eleitoral.
Voltando à questão do recesso, os
jornais destacaram positivamente que
agora o Brasil tem o menor recesso
parlamentar do mundo, junto com a
Alemanha. Mas será que isso contribui
mesmo para a democracia? O nosso Poder
Legislativo é formado por duas casas:
Câmara e Senado. Segundo a Constituição,
a Câmara compõe-se de representantes do
povo, e o Senado, de representantes dos
Estados e do Distrito Federal. Ora, se
513 deputados representam 185 milhões de
brasileiros, não seria lógico que esses
parlamentares tivessem um tempo definido
em lei para estar junto a sua base
eleitoral para poder “captar” a demanda
política da população e levá-la ao
Congresso? Seriam 55 dias tempo
suficiente para esse contato entre
representantes e representados?
A mídia, no entanto, pouco contribuiu
para esse debate. Apresentando-se sempre
como tribuna do povo, mas beirando o
populismo, os jornais foram praticamente
unânimes em reafirmar o discurso
corrente de que deputados são corruptos,
ganham salários altos e trabalham pouco.
E todos os veículos cometeram um pecado
capital do jornalismo: não apresentar de
forma consistente as duas partes da
questão.
A falta da imparcialidade, nesses casos,
é comum, já que os jornalistas procuram
trabalhar sempre no campo do consenso.
Quando uma questão é polêmica, a
imprensa tende a reproduzir os vários
pontos de vista; mas quando há um
pensamento hegemônico do qual poucos
discordam, os jornais estabelecem a
ótica da maioria como limite para a
interpretação dos fatos. A questão é
saber se esse pensamento hegemônico
persiste: 1) por que a sociedade ainda
não debateu sobre o assunto (por falta
de oportunidade ou espaço), analisando
os vários lados da questão; ou 2) por
que o assunto já foi debatido e, depois
de analisados os vários lados, houve
formação de consenso.
Considero que, no caso do recesso
parlamentar, estamos na perigosa posição
do primeiro caso. No entanto, mesmo se
estivéssemos no segundo caso, até
poderia servir de atenuante, mas não
seria motivo suficiente para que os
jornais se esquivassem de apresentar
outros argumentos que reavivassem o
debate. Enfim, como disse Nelson
Rodriges, toda unanimidade é burra.
Apesar de não parecer ético, não é
difícil entender por que é interessante
para os jornais mostrar os fatos segundo
esse quase consenso. Cito dois motivos:
1) se fogem muito do pensamento
dominante, os leitores perdem
identificação com esses jornais, o que
pode levar a perda de audiência e
assinantes; 2) reafirmar uma idéia exige
menor esforço (e risco) jornalístico
para o repórter e para o editor do que
contrariá-la. No caso específico da
diminuição do recesso parlamentar, eu
acrescentaria outro motivo: o jornal que
desse destaque demais ao outro lado
poderia ser acusado de estar defendendo
interesses dos parlamentares.
Pouco trabalho
A força da opinião pública pela
diminuição do recesso parlamentar está
vinculada a uma idéia de fundo: a de que
os parlamentares trabalham pouco. Não
quero entrar no mérito se a questão é
verdadeira ou falsa, mas gostaria de
salientar novamente a má cobertura da
mídia sobre o assunto, o que explica em
parte a formação e reafirmação dessa
idéia.
Se perguntássemos a uma pessoa qualquer
que imagem lhe vem à cabeça ao pedirmos
que pense em um deputado trabalhando,
quase certamente ela descreveria uma
sessão plenária. Afinal, essa é a imagem
passada pela televisão. No entanto, as
votações em plenário são apenas uma
parte das atribuições dos parlamentares.
A maior prova de que o plenário é lugar
de passar pouco tempo é que lá sequer
tem quantidade de assentos suficiente
para todos os deputados. Os jornais,
seja por acomodação ou por
incompetência, deixam de explicar: que
nos turnos em que não há sessão plenária
há reuniões das comissões permanentes e
que cada deputado participa de pelo
menos uma dessas comissões; que as
negociações para aprovação de leis
ocorrem nos bastidores; que muitos
almoços ou jantares com outros políticos
ou com membros da sociedade civil não
são por diversão, mas por trabalho; que
o contato com a sociedade não é somente
estratégia eleitoral, mas também faz
parte do trabalho parlamentar etc.
Enfim, os jornais precisam mudar a forma
como realizam a cobertura do Congresso.
Isso não significa deixar de apresentar
as denúncias ou evitar mostrar as
famosas cenas de fim de votação, mas sim
deixar claro que essas são apenas uma
parte do parlamento – e não o todo. E,
para que o povo entenda isso, os jornais
também têm que mostrar a outra parte e
não somente dizer que ela existe. Se
quisermos avançar em termos
democráticos, nossos jornais devem
evitar a estratégia populista de
publicar apenas os argumentos que seus
leitores querem ler, precisam sair do
lugar-comum. Isso não faz o debate
avançar, nem condiz com o papel assumido
pela imprensa, de arena para a disputa
de idéias.