Psicólogo varreu as ruas da
USP para concluir sua tese de mestrado da
"invisibilidade pública"
"Fingi ser gari por anos e vivi como um ser
invisível"
Ele comprovou que, em geral,
as pessoas enxergam apenas a função social do outro.
Quem não está bem posicionado sob esse critério, vira
mera sombra social.
O psicólogo social Fernando
Braga da Costa vestiu uniforme e trabalhou anos como
gari, varrendo ruas da Universidade de São Paulo. Ali,
constatou que, ao olhar da maioria, os trabalhadores
braçais são "seres invisíveis, sem nome".
Em sua tese de mestrado, pela
USP, conseguiu comprovar a existência da "invisibilidade
pública", ou seja, uma percepção humana totalmente
prejudicada e condicionada à divisão social do trabalho,
onde enxerga-se somente a função e não a pessoa.
Braga trabalhava apenas meio
período como gari, não recebia o salário de R$ 400 como
os colegas de vassoura, mas garante que teve a maior
lição de sua vida: "Descobri que um simples bom dia, que
nunca recebi como gari, pode significar um sopro de
vida, um sinal da própria existência", explica o
pesquisador.
O psicólogo sentiu na pele o
que é ser tratado como um objeto e não como um ser
humano. "Professores que me abraçavam nos corredores da
USP passavam por mim, não me reconheciam por causa do
uniforme. Às vezes, esbarravam no meu ombro e, sem ao
menos pedir desculpas, seguiam me ignorando, como se
tivessem encostado em um poste, ou em um orelhão", diz.
Apesar do castigo do sol
forte, do trabalho pesado e das humilhações diárias,
segundo o psicólogo, são acolhedores com quem os
enxerga.. E encontram no silêncio a defesa contra quem
os ignora.
Como é que você teve essa
idéia?
- Meu orientador desde a
graduação, o professor José Moura Gonçalves Filho,
sugeriu aos alunos, como uma das provas de avaliação,
que a gente se engajasse numa tarefa proletária. Uma
forma de atividade profissional que não exigisse
qualificação técnica nem acadêmica. Então, basicamente,
profissões das classes pobres.
Com que objetivo?
A função do meu mestrado era
compreender e analisar a condição de trabalho deles (os
garis), e a maneira como eles estão inseridos na cena
pública. Ou seja, estudar a condição moral e psicológica
a qual eles estão sujeitos dentro da sociedade. Outro
nível de investigação, que vai ser priorizado agora no
doutorado, é analisar e verificar as barreiras e as
aberturas que se operam no encontro do psicólogo social
com os garis. Que barreiras são essas, que aberturas são
essas, e como se dá a aproximação?
Quando você começou a
trabalhar, os garis notaram que se tratava de um
estudante fazendo pesquisa?
Eu vesti um uniforme que era
todo vermelho, boné, camisa e tal. Chegando lá eu tinha
a expectativa de me apresentar como novo funcionário,
recém-contratado pela USP pra varrer rua com eles. Mas,
os garis sacaram logo, entretanto nada me disseram.
Existe uma coisa típica dos garis: são pessoas vindas do
Nordeste, negros ou mulatos em geral. Eu sou branquelo,
mas isso talvez não seja o diferencial, porque muitos
garis ali são brancos também. Você tem uma série de
fatores que são ainda mais determinantes, como a maneira
de falarmos, o modo de a gente olhar ou de posicionar o
nosso corpo, a maneira como gesticulamos. Os garis
conseguem definir essa diferenças com algumas frases que
são simplesmente formidáveis.
Dê um exemplo?
Nós estávamos varrendo e, em
determinado momento, comecei a papear com um dos garis.
De repente, ele viu um sujeito de 35 ou 40 anos de
idade, subindo a rua a pé, muito bem arrumado com uma
pastinha de couro na mão. O sujeito passou pela gente e
não nos cumprimentou, o que é comum nessas situações. O
gari, sem se referir claramente ao homem que acabara de
passar, virou-se pra mim e começou a falar: "É Fernando,
quando o sujeito vem andando você logo sabe se o cabra é
do dinheiro ou não. Porque peão anda macio, quase não
faz barulho. Já o pessoal da outra classe você só ouve o
toc-toc dos passos. E quando a gente está esperando o
trem logo percebe também: o peão fica todo encolhidinho
olhando pra baixo. Eles não. Ficam com olhar só por cima
de toda a peãozada, segurando a pastinha na mão."
Quanto tempo depois eles
falaram sobre essa percepção de que você era diferente?
Isso não precisou nem ser
comentado, porque os fatos no primeiro dia de trabalho
já deixaram muito claro que eles sabiam que eu não era
um gari. Fui tratado de uma forma completamente
diferente. Os garis são carregados na caçamba da
caminhonete junto com as ferramentas. É como se eles
fossem ferramentas também. Eles não deixaram eu viajar
na caçamba, quiseram que eu fosse na cabine. Tive de
insistir muito para poder viajar com eles na caçamba.
Chegando no lugar de trabalho, continuaram me tratando
diferente. As vassouras eram todas muito velhas. A única
vassoura nova já estava reservada para mim. Não me
deixaram usar a pá e a enxada, porque era um serviço
mais pesado. Eles fizeram questão de que eu trabalhasse
só com a vassoura e, mesmo assim, num lugar mais
limpinho, e isso tudo foi dando a dimensão de que os
garis sabiam que eu não tinha a mesma origem
socioeconômica deles.
Quer dizer que eles se
diminuíram com a sua presença?
Não foi uma questão de se
menosprezar, mas sim de me proteger.
Eles testaram você?
No primeiro dia de trabalho
paramos pro café. Eles colocaram uma garrafa térmica
sobre uma plataforma de concreto. Só que não tinha
caneca. Havia um clima estranho no ar, eu era um sujeito
vindo de outra classe, varrendo rua com eles. Os garis
mal conversavam comigo, alguns se aproximavam para
ensinar o serviço. Um deles foi até o latão de lixo
pegou duas latinhas de refrigerante cortou as latinhas
pela metade e serviu o café ali, na latinha suja e
grudenta. E como a gente estava num grupo grande,
esperei que eles se servissem primeiro. Eu nunca
apreciei o sabor do café. Mas, intuitivamente, senti que
deveria tomá-lo, e claro, não livre de sensações ruins.
Afinal, o cara tirou as latinhas de refrigerante de
dentro de uma lixeira, que tem sujeira, tem formiga, tem
barata, tem de tudo. No momento em que empunhei a caneca
improvisada, parece que todo mundo parou para assistir à
cena, como se perguntasse: 'E aí, o jovem rico vai se
sujeitar a beber nessa caneca?' E eu bebi. Imediatamente
a ansiedade parece que evaporou. Eles passaram a
conversar comigo, a contar piada, brincar.
"Essa experiência me deixou
curado da minha doença burguesa"
O que você sentiu na pele,
trabalhando como gari?
Uma vez, um dos garis me
convidou pra almoçar no bandejão central. Aí eu entrei
no Instituto de Psicologia para pegar dinheiro, passei
pelo andar térreo, subi escada, passei pelo segundo
andar, passei na biblioteca, desci a escada, passei em
frente ao centro acadêmico, passei em frente a
lanchonete, tinha muita gente conhecida. Eu fiz todo
esse trajeto e ninguém em absoluto me viu. Eu tive uma
sensação muito ruim. O meu corpo tremia como se eu não o
dominasse, uma angustia, e a tampa da cabeça era como se
ardesse, como se eu tivesse sido sugado. Fui almoçar não
senti o gosto da comida voltei para o trabalho
atordoado.
E depois de oito anos
trabalhando como gari? Isso mudou?
Fui me habituando a isso,
assim como eles vão se habituando também a situações
pouco saudáveis. Então, quando eu via um professor se
aproximando - professor meu - até parava de varrer,
porque ele ia passar por mim, podia trocar uma idéia,
mas o pessoal passava como se tivesse passando por um
poste, uma árvore, um orelhão.
E quando você volta para casa,
para seu mundo real?
Eu choro. É muito triste,
porque, a partir do instante em que você está inserido
nessa condição psicossocial, não se esquece jamais.
Acredito que essa experiência me deixou curado da minha
doença burguesa. Esses homens hoje são meus amigos.
Conheço a família deles, freqüento a casa deles nas
periferias. Mudei. Nunca deixo de cumprimentar um
trabalhador. Faço questão de o trabalhador saber que eu
sei que ele existe. Eles são tratados pior do que um
animal doméstico, que sempre é chamado pelo nome. São
tratados como se fossem uma coisa.
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Todo o mundo se sente
invisível em algum momento da vida - numa festa de gente
de outra tribo, no emprego novo em que não se conhece
ninguém. Mas essas são outras invisibilidades,
circunstanciais, e portanto passageiras, reversíveis. O
estudo de Braga é sobre uma invisibilidade tão
automatizada na sociedade que muitas vezes nem mesmo o
ser invisível se dá conta de sua degradante situação.
'Se ele percebe, carece de armas para o combate. Depois
de ser ignorado a vida inteira ou, no máximo,
maltratado, ninguém anda de cabeça erguida.'
De fato, na maioria das vezes,
o gari que limpa nossa cidade só é notado quando falta
ao serviço. O ascensorista é tratado como uma máquina
que funciona por comando de voz, sem direito a 'por
favor' nem 'obrigado'. A empregada doméstica põe o
avental, alimenta a família e deixa a casa organizada
anos a fio, mas os patrões mal sabem seu sobrenome, se
tem filhos, se está com algum problema. Os únicos
cidadãos que vestem uniforme para servir aos outros e
ganham visibilidade e reconhecimento são os que estão em
situação de poder sobre o interlocutor - médicos,
enfermeiros, policiais. 'Algumas profissões estão num
nível de rebaixamento absoluto', reforça Braga. 'As
pessoas estão habituadas a passar pelos garis como quem
passa por objetos', assinala.
Concluída em 2002, a tese
agora vira livro lançado pela editora Globo.
TÍTULO :Homens Invisíveis:
Relatos de uma Humilhação Social-AUTOR Fernando
Braga-EDITORA Globo